sábado, 23 de outubro de 2010

Bruxsa

A noite nasceu na cidade, ingénua e fria. Banhando de negro o céu, alimentando as sombras, desenhadas em seus contornos. Ela deixou que o seu cabelo se soltasse. Negro e perfumado bailou ao longo de suas costas nuas. Os brilhantes olhos verdes vislumbraram aquela que poderia ser a sua próxima vítima. Um leve sorriso sombrio delineou-se nos seus lábios perfeitos. Ficou por alguns segundos, ali, parada. Então, curvou-se em direcção ao chão, tapando o seu corpo frágil com a longa cabeleira negra. E num pequeno rodopio de poeira, diversos espigões começaram a surgir em seus braços, transformando-se em aveludadas penas negras, e transformando-se em duas asas simétricas. Os seus olhos transformaram-se numa pequena circunferência verde-escura, ladeando um enorme círculo negro, brilhante. E aquela mulher sedutora tinha-se transformando num elegante corvo. Seu pequeno anel prateado era como uma anilha em sua pata, a única coisa que poderia ser associada à sua pessoa, para além daqueles olhos tão frios.

Uma criança, com pouco mais de um ano era visível de uma janela do último andar. Brincava distraidamente com um carrinho de plástico. Enquanto a ama adolescente se deliciava com um copo de gelado e uma novela qualquer, do outro lado da sala. Ela pousou sobre o gradeamento da varanda. Observando. A criança nem notou a sua presença, bem como a rapariga que estava sentada de costas para a janela.

Fixou os olhos no bebé. Emanando pequenas vibrações de carácter telepático.

“Vem até mim.” Dizia-lhe em pensamento. O bebé largou o carrinho, numa expressão séria. Demasiado séria para uma criança daquela idade. Colocou-se de joelhos, levantando-se sem dificuldade e caminhou em direcção à varanda. A ama não se apercebeu. A criança estava parada, com o olhar fixo no corvo, demasiado grande para ser um corvo normal. E o corvo saltou do gradeamento da varanda para o chão. Fixou seus olhos na fechadura da porta, num olhar muito penetrante e com um brilho sinistro. A porta deslizou silenciosamente.

“Vem a mim, pequeno.” Voltou a emanar em pensamentos. O menino caminhou até ao enorme corvo. Os braços caídos ao lado do corpo, rosto sério, olhos vazios mas fixos naquela criatura misteriosa. O pássaro negro abriu as suas grandes asas, erguendo-se à altura da criança. E com as suas garras, agarrou-a abruptamente pelos ombros, cravando-as de tal forma que a criança sangrou. Mas nenhuma reacção tomou. Hipnotizada, nada sentiu. A Ama continuava absorta na novela, não se apercebendo que estava sozinha. Com a porta da varanda aberta e um pequeno rasto de sangue que se perdia no gradeamento.

Na velha cidade escura, ninguém via que um enorme pássaro negro levava uma criança nas garras. Indo em direcção à zona pobre e mais mal iluminada. Numa casa simples e mal tratada, lá pousou. A criança adormecida foi colocada no chão.

A poucos metros de distância, voltou a definir-se uma figura feminina. O seu corpo curvilíneo procurou um leve vestido que estava pendurado num prego da parede. Caminhou em direcção ao corpo adormecido e pegou-o nos braços, como se de um filho seu se tratasse. Sangue continuava a escorrer pelo corpo da criança, manchando os ombros finos da mulher. Ela pareceu indiferente a esse facto. Em casa, deitou-o sobre a mesa central. Ligou a frágil luz da sua cozinha, a criança piscou os olhos, como se despertasse de um sono profundo. A mulher começou a cantarolar uma música da sua infância, enquanto procurava um alguidar de barro. A criança chorou ao ambiente estranho. Um choro ruidoso. A mulher olhou para ela, cantarolando um pouco mais alto. Aproximou-se, vagarosamente até estar junto ao rosto do menino. Seus olhos frente a frente com os da criança, a poucos centímetros de distância. O choro cessou.

- Agora vamos passar ao jantar. – Ela disse mais para si mesma, do que para a criança. Foi andando até ao alguidar de barro que estava sob a bancada da sua cozinha. Pegou numa enorme faca e colocou-a dentro do alguidar. Trazendo tudo para a mesa onde a criança estava deitada. Que olhava para ela com curiosidade. Os olhos verdes da mulher brilhavam com gulodice. Ela sentia a saliva aumentar na sua boca. Imaginava qual o seu sabor, qual a textura deste novo rebento. Pegou no seu cabelo, separando-o em três mechas e entrançou-o. Virou o corpo da criança de barriga para cima, esticando-a e prendendo os pés a duas fivelas que estavam num dos lados da mesa. Pegou nas mãozinhas da criança hipnotizada e também as prendeu. Depois, girou uma pequena alavanca, que fez com que a mesa ficasse um pouco inclinada. A criança não se moveu. Ela cantarolava, distraidamente, enquanto colocava o alguidar na direcção da mesa, da ponta que estava mais próxima do chão. Pegou na faca e aproximou-se dos pulsos do pequenino. Passou um dedo, sobre as veias saliente. Um leve sorriso iluminou a sua cara. E, num golpe preciso e rápido rasgou um dos pulsos. O cheiro a sangue depressa lhe invadiu as narinas. Era um perfume atordoante, quase hipnótico para ela. A criança não se moveu, estava estranhamente imóvel, olhando para o rosto da mulher, perdida nos seus olhos verdes. O sangue jorrou pelas fisgas da mesa, sendo escoado directamente para o alguidar. Ela levou a faca aos lábios, tocando ao de leve no sangue ainda quente que estava na lamina. Fechou os olhos por segundos e soltou um pequeno gemido de satisfação. Então apressou-se a saltar para o outro lado da mesa, e, desta vez num gesto ainda mais rápido, ela cortou o outro pulso do menino. Pousou a faca na mesa, vendo por alguns minutos o sangue a escorrer. Quando a criança começou a ganhar uma certa palidez no rosto, ela aproximou-se do seu pescocinho. Passou um dos dedos junto à jugular. Como era macia aquela pelezinha, pálida e frágil.

Abriu a boca, empurrando os seus lábios carnudos para trás, dentes salientes pareciam entesar-se para a frente. E como se de uma picada se tratasse, ela enfiou-os na carne tenra do pescocinho, sem qualquer dificuldade. Enormes jactos de sangue jorraram na sua boca. Sua língua quase parecia dormente pelo impacto daquele líquido aquecido. Seus olhos fecharam-se inconscientemente, naquele momento só existia ela e o sangue que bebia. O seu corpo era consumido por leves espasmos de prazer, de um rejuvenescimento silencioso e brutal. Quase que podia sentir sua pele a ficar mais lisa, suas unhas a enrijecerem-se suas pernas a fortalecerem-se. Era vida que entrava dentro dela. Era morte que ela trocava ao matar sua sede.

Então, como se despertasse de repente daquele acto de gula e brutalidade. Ela largou o pescocinho. Ela não podia ver, mas sabia que seus olhos estavam de um verde natural, saudável. Olhou para as suas mãos, parecia que uma nova camada de pele se tinha formado. Sua trança estava mais brilhante, mais forte. Assim, descontraiu seus lábios, encolheu as presas e voltou á sua dócil figura humana. A criança estava desmaiada, a um passo da morte. A mulher pegou na faca e aproximou-a da mordida, fazendo um golpe maior no pescoço. Não havia mais vida para aquele pequeno rebento.

Deixou escoar o sangue, por quase toda a noite. Limpou o seu rosto, belo e rejuvenescido. Ajeitou o seu cabelo e descansou sob uma cadeira. Olhando para o cadáver que tinha na mesa.

Pensava na vida, nos desafios que teria no dia seguinte que enfrentar no emprego. Noticias não iriam faltar, certamente. Depois pensou onde iria largar o cadáver. Teria que ser um local mais chocante, um local que desse uma história mais marcante. Ela não queria ver a jovem ama a ser acusada do assassinato do pequeno Dinis. Imaginem, uma mera adolescente a ser reconhecida por um assassinato tão limpo como aquele. Ela iria sentir-se ofendida pelo roubo de protagonismo. Lembrou-se assim de um local que não ia passar indiferente. E, que de certo, ficava bem para a história da cidade.

Quando faltava apenas uma hora para o nascer do Sol, ela ergueu-se da cadeira. Levou o corpo para a rua, despiu o vestido e pendurou-o no prego. Baixou-se para a sua transformação e pegou no cadáver. Voou para o topo da câmara municipal e deixou-o lá, bem á vista.

Uma pequena vingança de uma bruxa vampira rancorosa. Ela pensou.

No outro dia de manhã, ela chegou ao “Fonte Nova”, jornal citadino onde ela trabalhava como jornalista, e encontrou todos num alvoroço.

- Julieta! Temos a notícia do dia. – Falou um homem gorducho de um dos gabinetes, correndo apressadamente até ela. – O filho mais novo do presidente desapareceu ontem à noite. Quero que escrevas um artigo de duas páginas sobre isso. O Marcelo já está lá fora no carro à tua espera, arranjem-me pelo menos uma fotografia da família chorosa!

- Ok chefe. – Ela pegou no caderno de cima da sua secretária e colocou-o na malinha. Dando uma última olhadela ao seu chefe, pensou: Prometo arranjar boas fotos.

Um sorriso surgiu no seu rosto. Com um andar confiante foi em direcção à saída. A jornalista simpática do “Linhas Novas”, que com um sorriso cumprimenta os colegas todas as manhãs, leva uma vida dupla que jamais alguém descobrirá, apenas verá os seus artigos. As histórias horrendas de corpos que foram encontrados e que permanecem no mistério, mas que por qualquer motivo fascina aqueles que as lêem, dando-lhe uma carreira promissora.

Segundo a mitologia do vampiro, existe uma espécie de origem Portuguesa, os Bruxsa. Na sua maioria surgem sob a forma de uma mulher com beleza excepcional, que durante o dia leva uma vida perfeitamente normal, mas à noite adopta a forma de um enorme pássaro negro para procurar alimento, geralmente tem preferência por sangue jovem, crianças. Não há nenhuma forma conhecida de as destruir...
Inspirado em mais uma história/lenda aqui da terrinha, escrevi este conto, que apesar da falta de tempo, não pude deixar de o postar no TDMN.

1 comentário:

  1. adorei cada detalhe da historia, a sensualidade e o lado macabro da lenda. muito bem descrito, parabens.

    http://terza-rima.blogspot.com/

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