sábado, 31 de outubro de 2009

Quando um homem desespera

O vento soprava de forma intensa lá fora. Os cortinados dançavam agitadamente projectando sombras assustadoras na parede. As janelas batiam, num som ensurdecedor. Marco levantou-se para as fechar. Tinha que comprar fechaduras novas, aquelas já não aguentavam o vento. Foi buscar dois cabos de vassouras e colocou-os de forma que a janela não voltasse a abrir. Respirou fundo e voltou para a sua cama. Abraçou a sua mulher, que estava muito enroscada nos cobertores, e assim se deixou de dormir, envolto no calor dela.
De manhã o vento estava mais calmo. Abriu os olhos por causa de alguns raios de sol que se escapuliam por entre os cortinados rotos. Estava sozinho na cama, abraçado à sua almofada. Piscou os olhos, como se não estivesse a ver bem, mas depressa se consciencializou de que estava mesmo sozinho. Foi até à cozinha, encheu a chávena de café, pegou num bocado de pão do dia anterior, barrou com um pouco de margarina e comeu.
- Nem penses que eu vou voltar. Estou farta da tua preguiça, da tua estupidez e da tua frieza. Desta vez não é um aviso. Sou eu a ir mesmo embora. – A mulher arrumava nas duas malas, todas as suas roupas e bens. – Cansei-me de esperar. Tu fazes sempre a mesma coisa. Dizes que tudo vai mudar para melhor, mas no dia seguinte voltas à mesma. – O homem estava encostado à parede sem dizer uma única palavra, sem qualquer expressão de incómodo na cara. Até parecia que estava tudo bem, ele tinha um leve sorriso na cara, meio sumido, mas que dava para notar. – Marco. Tu estás a ouvir-me? – Disse a mulher, com grossas lágrimas a correr-lhe pelo rosto.
- Estou querida. – Desta vez Marco esboçou um grande sorriso na cara. – Fazes como quiseres. – Ela expirou com desgosto. Pegou nas malas e saiu pela porta do quarto. Ele nem se mexeu, manteve-se encostado à parede a olhar para a porta. Ela voltou atrás, entrando no quarto e atirando com qualquer coisa para cima dele.
- Toma a porcaria das chaves! Não vou precisar mais delas! – Ficou por um momento a olhar para ele. Chocada com a sua falta de reacção. E saiu. Dessa vez para sempre.
Esta lembrança era-lhe muito dolorosa. Ele gostava mesmo dela. Ela era a única pessoa com quem ele realmente falava e queria proteger.
Acabou de comer e foi até ao telefone. Tinha várias mensagens guardadas, da sua mãe, do patrão, mas nenhuma dela. Ele pegou no casaco e no maço de cigarros e saiu. Aquela casa já não era o que era. Agora causava-lhe dor.
Desceu pela rua. Estava pouco movimentada devido à hora da manhã. Ele acendeu um cigarro e fumou enquanto caminhava sem rumo. Uma chuva fininha começou a cair, mas ele ignorou.
Ao fim de um bocado ele sentiu a cabeça à roda, os olhos ardiam-lhe e ouviu um zumbido demasiado forte. Teve que se por de joelhos, largando o cigarro no meio do chão e levando as mãos aos ouvidos.
- Não! Outra vez não! – Gritou. – Seu sacana!
Acabou por cair de costas no chão gelado, rebolando com as mãos nos ouvidos. Até que perdeu a consciência.
- Está bem? – Sentiu um toque no ombro. – Senhor. Está-me a ouvir? – O toque pareceu um pouco mais forte.
Marco sentou-se.
- Estou óptimo, obrigado. – Disse com um sorriso nos lábios. – Foi só uma ligeira baixa de tensão. – O rapaz que estava à sua frente ajudou a levantar-se. Marco olhou em volta mas não viu ninguém. – O que estás a fazer sozinho na rua a esta hora?
- Vou para a escola. Tenho que ir a pé porque não tenho dinheiro para o autocarro. E como é longe tenho que ir cedo. – O rapaz era afinal uma criança. Daquelas que são muito altas e parecem mais velhas. Marco levou a mão ao bolso, mas estava vazio.
- Não trouxe a minha carteira. – Então olhou nos olhos do rapaz. – Mas, de qualquer das maneiras esse exercício faz-te muito bem. Obrigada pela ajuda. – E Marco afastou-se.
Quando perdeu o rapaz de vista, Marco ouviu os gritos dele. Gritos aflitos e de dor. Durante uns minutos os gritos ecoaram pela rua de forma intensa até que cessaram por completo. Marco sorriu de forma mais intensa, bem-disposto e aproximou-se da montra mais próxima, olhando para o seu reflexo.
- Ainda não superaste a perda da tua namoradinha? – Ele olhou com uma expressão divertida para o seu reflexo. – É melhor superares depressa. És um homem, não um rato. Deixa-te de todo esse sentimentalismo idiota. – Ficou a encarar o seu reflexo por um tempo. – Se não fosse eu, tu não eras nada. – Marco sentiu uma guinada na cabeça. – Isso não me afecta. Tu és apenas….qual é mesmo a palavra adequada?... Ah, já sei….Tu és apenas um homem fraco. – Marco riu com vontade e continuou o seu caminho.
Nessa tarde, quando a noite já estava a chegar. Marco acordou em casa. Levou as mãos à cabeça, ao ter um vislumbre de reflexos mentais do que tinha feito durante o dia. Levantou-se, pegou no casaco e voltou a sair. Uma revolta atordoante envolvia-o numa fúria. Bateu a porta com força quando saiu. Ele tinha que falar com alguém. Ele tinha que contar o que se estava a passar. Então ocorreu-lhe um local que ele não visitava há anos.
Entrou pela comprida porta de madeira. Os seus passos ecoaram por todo lado. Ao longe, milhares de velas estavam acesas em frente aos vários altares com figuras de Nossa Senhora de Fátima e S. José. Uma enorme cruz, estava no altar central, com uma imagem sangrenta de Jesus Cristo pregado. Uma mulher saiu do confessionário, agachando-se e benzendo-se ao passar em frente de um outro altar secundário. Marco foi em direcção ao confessionário, entrou e sentou-se no banco ligeiramente almofadado. Um padre com uma voz profunda e de alguém com já alguma idade falou algo sobre pecados e purificação da alma. Marco respirou fundo.
- Perdoe-me padre que eu tenho pecado.
- Estás aqui para poderes confessar os teus pecados, meu filho.
- Já faz muito tempo que não entro numa igreja.
- Deus recebe sempre de braços abertos os arrependidos e perdoa-lhes. – Marco ficou em silêncio. – Confessa os teus pecados para que ele te possa perdoar.
- Padre, eu tenho enganado muita gente. Eu sou duas pessoas diferentes.
- Como assim meu filho?
- Padre, eu sou eu mesmo neste momento, mas há dias em que eu não tenho controlo nas minhas acções. Eu fico horrorizado com as acções desse meu outro. Eu falo comigo mesmo e tenho noção do meu outro eu. Mas não o consigo controlar.
- O que te faz pensar que és duas pessoas diferentes e não tu num dia mau?
- Padre, as coisas que o meu outro eu faz são demasiado horríveis para que fosse eu a fazê-las.
- O que é que o teu outro eu faz?
- Magoa seriamente as pessoas. Afasta-me daqueles que amo. Mancha o meu nome através das minhas mãos. Denigre a minha vista com actos horrendos.
- Meu filho. Reza com muita força. Eu rezarei por ti, hoje mesmo e daqui para a frente. Mas o que faz o teu eu de tão horrendo?
- Ele, ele… – Marco sentiu-se quase a contar tudo. Mas era demasiado tenebroso contar aquilo tudo. Por isso levantou-se e correu para fora da igreja. Não podia viver mais naquele inferno, naquela prisão estúpida. Mas ai voltou a sentir a cabeça à roda, os joelhos a arderem-lhe e a ouvir o forte zumbido. Caiu no chão. Mas levantou-se como se nada fosse ao fim de segundos.
- Oh. Estavas a querer acabar com a diversão? – Marco caminhou em direcção à ponte. Que era visível em frente da igreja. – É verdade que já me começas a aborrecer. Sempre deprimido e idiota. Mas só me vou descartar de ti depois de esticar o pernil. – Continuava falando sozinho. Uma mulher que passou por ele olhou-o. – Sim, querida. Enlouqueci e estou a falar sozinho. Estava a pensar como seria espetar um punhal no teu peito. – A mulher ficou chocada e começou a correr. – Podes correr. Mas seu eu quisesse apanhava-te. – Gritou Marco, enquanto a mulher escorregava numa possa de água enquanto corria. – Mulheres. Pensam sempre que podem vir a correr mais do que um homem. – Marco meteu a mão no bolso e tirou um cigarro, que acendeu calmamente e deu uma passa. – Olha. Vou dar-te um presentinho. Visto que estás a pensar atirares-te da ponte, vamos brincar um bocadinho.
No outro dia de manhã. O padre que ouviu a confissão de Marco, estava a pensar numa maneira de o ajudar. Ele reconheceu a voz de Marco. Era filho de uma das mulheres mais devotas da igreja. Desde os treze anos que não aparecia naquela igreja. Era filho de gente boa e modesta, mas definitivamente algo não estava bem. O padre ligou a televisão e reconheceu a fotografia de Marco no canto do televisor.
- Oh meu deus! – Disse em choque, sentando-se numa cadeira.
- No início da noite de ontem, perto da ponte Cristóvão Albuquerque, foram assassinadas cerca de doze pessoas. Um homem de 27 anos, Marco Santana, enlouqueceu de um momento para o outro e foi apunhalando pessoas até chegar ao centro da ponte, de onde se atirou de cabeça. Acabando por morrer. Dizem as testemunhas que ele foi apunhalando aleatoriamente, conseguindo esquivar-se de todos os que o tentaram impedir. E foi confirmado que a arma do crime foi a mesma que foi utilizada em mais outros cinco assassinatos misteriosos que ocorreram na zona. Tendo assim, marco Santana matado cerca de dezassete pessoas de que se tenha conhecimento até à data. Passo agora á jornalista Fátima Bagulho que está no local onde foram feitas as vitimas…
- Oh meu Deus! – O padre benzeu-se. E correu para o telefone. – Estou? Irmã? Tenho de lhe contar uma coisa. Eu ontem recebi um homem que se foi confessar e que eu desconfiei que podia estar a sofrer de possessões. Eu não fiz nada em relação a isso, decidi esperar por hoje. E agora ele está morto. Veja nas notícias. É o Marco Santana.








sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Toque da noite: VII


Os pais de Maria pediram para que ela e a avó fossem durante o fim-de-semana lá a casa. Eles queriam ver a filha antes do começo do ano lectivo. Maria fez as malas das duas. E na sexta-feira de manhã foi-se despedir de Tatiana e Daniel. À tarde foram apanhar o expresso (autocarro) na cidade. A avó Medina não gosta muito de viagens longas, por isso passou as duas horas da viagem mal disposta com toda a gente.
- Oh minha nossa senhora de Fátima! – Escandalizou-se a avó Medina. – Mas aquela rapariga vai nua. – Maria não pode conter uma gargalhada.
- Avó, ela tem uns calções, muito curtinhos por debaixo da blusa. – Maria explicou enquanto a avó Medina seguia com o olhar a rapariga assim vestida. Os olhos esbugalhados e a boca ligeiramente aberta foram a expressão mais cómica que Maria tinha visto na cara da sua avó desde sempre. Por isso tirou o telemóvel e tirou-lhe uma fotografia. – Oh filha! Tu não tires fotografias a esta desavergonhada!
- Eu não estava a tirar fotografias à rapariga. – Maria guardou o telemóvel numa bolsa. – Estava a tirar-lhe a si para mais tarde relembrarmos este momento. – A avó Medina riu.
- Já estás a fazer pouco da avó? Eu estou demasiado velha para estas coisas. – Ela pousou a mão no joelho da neta. – Eu nem me tinha apercebido que as jovens de hoje andam assim vestidas. – Ela ficou pensativa. – Eu já tinha visto em novelas, mas sinceramente, pensava mesmo que não era assim, que aquilo era só para chamarem a atenção dos homens para eles começarem a ver novelas também. Graças a Deus que lá na aldeia as raparigas não se vestem assim. – Ainda bem que a avó não chegou a ver as fotografias da festa de anos da Cristina, uma colega de turma de Maria. Ela tinha uns calções deste tipo e uma blusa do tipo tomara que caía muito justa. Maria pensou enquanto sorria carinhosamente para a avó.
Mais tarde, quando chegaram à ultima paragem de autocarro. O pai de Maria estava sentado num banco, levantando-se assim que viu a filha e a mãe a aproximarem-se.
- Filho! – Gritou a velha com alguma emoção, abrindo os braços e quase desequilibrando-se. Já fazia nove meses desde que vira o filho pela última vez.
- Olá mãe. – Ele abriu os braços e deu um suave abraço à mãe. Provavelmente com medo de a magoar, ela parecia cada vez mais frágil com o passar do tempo. – Como foi a viagem?
- Muito chata e desconfortável. – Ela resmungou. – Mas só para te por a vista em cima já valeu a pena. – O homem sorriu. E virou-se depois para Maria, abrindo novamente os braços para a poder abraçar com força.
- Maria! – Ele disse com um sorriso ainda mais aberto. Espremendo-a com muita força.
- Olá, pai. – Ela sentiu o ar escapar-se dos pulmões involuntariamente, com o aperto. – Estás a sufocar-me.
- Oh. – Ele largou-a. – Desculpa. Já estava com muitas saudades.
- Pois. Têm sido umas longas férias da tua responsabilidade paternal. – Maria comentou, arrastando as malas para a parte de trás do carro.
- Nem por isso. – Ele disse, pegando em duas das malas e enfiando no porta-bagagem. – Uma vez que estás mais longe, torna-se mais difícil e as minhas responsabilidades triplicam. – Sentaram-se no carro, a avó Medina quis ir atrás.
- Então já sabes quando começam as aulas?
- Sim, é dia 17 de Setembro.
- Já só falta uma semana. – O pai dela comentou. Eles ficaram em silêncio uma grande parte do caminho, mas quando já estavam perto da casa a avó Medina comentou:
- Henrique! Tu estás mais gordo!
- Mãe, eu só engordei uns quilitos.
- Isso não é nada bom para a tua saúde. Já não tens idade para andares a comer tudo o que te aparece na frente. – O pai de Maria rolou os olhos, de maneira fatigada.
- Eu sei mãe. Mas as pessoas por vezes engordam só pelo simples facto de ficarem mais velhas.
- E descuidadas. – Acrescentou imediatamente a avó. – Tenho que falar com a tua mulher sobre isso. – O pai de Maria ficou calado. – Por falar nela. Ela já se convenceu que Maria não é nenhum mal, que não está possuída? – Ele rolou novamente os olhos, mas desta vez sem a preocupação de disfarçar.
- Pode tratá-la pelo nome. A Leonor nunca pensou que a Maria fosse um mal. Ela é uma crente muito grande e pôs a possibilidade de que o problema fosse mais do que um simples problema de saúde.
- Simples problema de saúde. – Maria interpôs-se. – Sim. Realmente, adivinhar o desaparecimento ou uma possível morte de uma pessoa pode se chamar de um pequeno problema de saúde. Sobretudo com uma explicação exacta por parte da ciência.
- Peço-vos para não começarem a falar disso na frente da Leonor. – Ele pediu ao avistar os portões da sua grande casa. – Ela está muito mais descansada desde que soube que Maria deixou de ter esses sonhos. – Parou o carro na garagem. – O que suponho que seja mesmo verdade, não? – Maria respondeu sem olhar para a avó, olhando directamente para os olhos do pai, sem lhe dar uma oportunidade de desconfiar da sua resposta.
- Sim, é verdade. Porque haveríamos de mentir sobre um assunto tão sério? – Henrique não respondeu, saiu do carro e ajudou a descarregar as malas. Leonor, uma mulher muito alta e elegante apareceu. As maçãs do seu rosto estavam ligeiramente avermelhadas e não havia qualquer sinal de cansaço na sua cara. Maria já não a via assim desde a primeira vez que lhe apareceram este tipo de sonhos.
- Olá mãe. – Ela cumprimentou, enquanto lhe deu um fraco abraço. Leonor esboçou um pequeno sorriso e retribuiu o abraço com um pouco de mais força.
- Como estás filha?
- Muito bem. Obrigada.
- Leonor. – Disse a avó Medina. – Estás mais magra. Ao contrário do Henrique.
- É. Abriu uma McDonalds perto do escritório dele e agora come lá muitas vezes. – A avó Medina levantou uma sobrancelha.
- Um quê?
- Servem comida de plástico, daquela rápida. – A avó fez uma careta ao ouvir a explicação da neta.
- Valha-me Deus! – Disse a avó olhando para o filho como se ele fosse um tonto.
- Deixe-me levar-lhe as malas para o seu quarto. – Interrompeu Henrique sem gostar do rumo que aquela conversa estava a ter.
Há hora do jantar Leonor falou sobre o novo salão de cabeleireiro que ela tinha aberto. Aparentemente estava a ter muito sucesso e já tinha várias raparigas cabeleireiras a trabalhar para ela, reduzindo-lhe horas de trabalho. Maria estava aborrecida com a conversa, mas pelo menos não estavam a falar da suposta “doença” dela. Mais tarde passaram a falar da morte do senhor Manuel. Henrique lembrou dos velhos tempos em que percorriam todas as quintas da zona e brincavam. Leonor estava definitivamente com boa cara e aparentemente esmerou-se na cozinha, pois a refeição estava muito boa.
- Estás tão calada. – Disse Leonor a Maria.
- Estou cansada da viagem. – Ela remexeu com a colher a sua pequena taça de salada de fruta. – Acho que me vou deitar a seguir ao jantar. Vou só terminar a sobremesa. – Leonor sorriu, mas deu para entender que não estava satisfeita com alguma coisa. Provavelmente estava a aperceber-se do grande buraco sentimental que se tinha aberto entre ela e a filha.
- Eu também estou muito cansada. A viagem de autocarro não é nada agradável para pessoas com a minha idade. – A avó Medina tinha terminado a sua salada de fruta. – Parabéns Leonor! Esta refeição está mil vezes melhor do que aquela porcaria que me deste da ultima vez.
- Da última vez tive um pequeno incidente com o sal. – Leonor ainda não tinha aceitado o facto de alguma vez ter sido a pior cozinheira de sempre. – E obrigado. Eu tenho tido mais tempo para aprender e praticar.
Assim que terminaram o jantar, Leonor recusou a ajuda da avó Medina e de Maria para arrumar a loiça. Disse para descansarem, que no dia a seguir iam a passear.
Maria tinha tido muitas saudades do seu quarto, da sua cama e dos seus tapetes estrelados. Ela olhou pela janela, a lua estava cheia e brilhava intensamente, embora os seus raios mal se notassem devido aos candeeiros da rua. O som da noite era diferente, ouviam-se carros ao longe, e por vezes lá disparava um alarme de um carro. A rua daquela zona era sossegada, um ou outro gato aventurava-se nos contentores do lixo e por vezes os cães dos vizinhos ladravam. Maria fechou a janela. O ruído da cidade banhada pela noite já não lhe parecia correcto. Na quinta da avó parecia tudo muito mais real, ela sentia a falta dos grilos e de poder ver as estrelas.
Deitou-se na cama e puxou o lençol sobre si. Deixou-se de dormir a pensar no dia seguinte em que ia reaver as suas amigas da cidade.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Toque da noite: VI

Era cerca de onze horas da noite, Maria e a avó estavam a ver uma série televisiva na FOX, quando o telemóvel de Maria tocou. Era Tatiana.
- O que é que a moça te disse? – A avó Medina ainda estava enterrada no sofá. Com as mãos sob os braços do sofá e com uma expressão preocupada, que misturada com as rugas acentuadas, podiam fazê-la parecer um pouco assustadora.
- O senhor Manuel faleceu.
- Oh Deus. – A avó Medina começou a chorar. Lágrimas escorriam-lhe pela cara e num soluço sonoro, ela levou as mãos à cara. Maria sentou-se suavemente a seu lado e abraçou a avó. Que simultaneamente rodou de maneira a puder abraçar a neta. – Ele era um rapaz novo. – Novo em comparação com a avó. Pensou Maria. Era um homem já com cinquenta anos. – Coitada da Teresa…ela vai ficar sozinha com os pestinhas. – Apesar de ser um momento de tristeza, Maria não pode conter um pequeno sorriso. A avó dela tinha mesmo zanga aos gémeos.
Como nessa noite não havia mais nada que pudessem fazer para com a família do senhor Manuel. Maria foi deitar a avó e só deixou o quarto, quando teve a certeza de que a avó acalmara e já estava a cair no sono. Ela ligou a Daniel para dar a notícia e decidiu ir-se deitar também.
O dia do funeral estava fresco. Teresa esteve o funeral todo a chorar desalmadamente, indiferente às grandes olheiras e ao estado de fraqueza. Os gémeos nunca estiveram tão sossegados na vida deles. Os dois vestidos de preto, um de cada lado da sua mãe, com os olhos muito vermelhos, de quando a quando choravam um pouco. Era bastante doloroso ver os dois miúdos a olhar para o caixão. Tatiana ficou o tempo todo ao lado deles. O pai de Tatiana estava sempre junto a Teresa, ela tinha uma perna partida e às vezes a força nos braços falhava-lhe. A viúva mãe do senhor Manuel, estava envolta nos braços da sua, agora, única filha, a mãe da Tatiana. Já não chorava tanto, mas os olhos dela eram muito vermelhos. Maria nunca gostou de funerais. Manteve-se sempre ao lado da sua avó. Daniel esteve sempre perto dela. Tiago parecia querer manter-se à distância, mas ajudou a carregar o caixão e no final foi para perto dos gémeos. Quando enterraram o corpo, a pouco e pouco as pessoas foram deixando o cemitério. Apenas os familiares mais próximos ficaram. João ofereceu boleia no seu carro para levar a avó Medina até à sua quinta. Maria agradeceu, mas soube que havia ali interferência de Tatiana. Uma amiga, também de idade da avó Medina, foi almoçar lá a casa. Por isso, Maria voltou para a aldeia com João e foi ter com Tatiana.
Os gémeos estavam muito quietos, sentados no sofá da sala de estar, com o olhar vazio. Não pareciam as mesmas crianças de 10 anos. Teresa tinha-se ido deitar. Ela ia ficar no quarto de visitas até que estivesse melhor da perna. Os gémeos iam dormir no quarto de Tiago. Tatiana tinha posto a mesa para oito pessoas, a mãe dela insistiu para que Maria e João ficassem para o almoço.
- Meninos podem vir almoçar. – Como dois zombies, os gémeos sentaram-se à mesa. – Depois podem ir dormir o tempo que quiserem. Eu já fiz as vossas camas no quarto do Tiago. – A mãe de Tatiana, a senhora Filomena não esperou uma resposta da parte deles. Ela sentia pena dos garotos. Foi um almoço silencioso, e no final os gémeos desapareceram no andar de cima. Tiago foi para a sala, ver televisão com o pai. A mãe de Tatiana foi a casa de Teresa buscar algumas roupas para os seus hóspedes. Maria ajudou Tatiana com a loiça e João levantou a mesa. Era irreal ver o João a fazer uma tarefa deste tipo.
- A minha avó vai ajudar a Teresa. Elas dão-se muito bem, por isso quando a Teresa recuperar da perna, vai para casa e a minha avó vai morar com ela. – Tatiana ia falando enquanto enfiava a loiça na máquina de lavar.
- E tu, querida, estás bem? – Perguntou João.
- Estou melhor que elas. – O longo cabelo de Tatiana estava solto, caindo-lhe sob as costas numa cascata de ondulações aloiradas. João foi até ela e deu-lhe carinhosamente um beijo na testa. Ela sorriu-lhe. – Eu gostava muito do meu tio. Mas acho que se fosse o meu pai…eu nem sei o que fazia.
De tarde Maria foi até casa de Daniel. Ela sabia que o funeral do senhor Manuel lhe trazia uma memória dolorosa do funeral do pai dele. Daniel estava no quarto a jogar PS3. Maria jogou com ele a tarde toda. Acabaram por não falar sobre nada em concreto. Daniel não mencionou nada sobre o pai dele e Maria também não o quis fazer.
Quando o sol se começou a pôr. Daniel fez questão de acompanhar Maria até casa dela. Ela estranhou o facto de ele levar a mochila.
- Para que é isso?
- Oh. – Na verdade era para levar o diário dela e tentar colocá-lo de volta no lugar. – Eu ainda quero ir apanhar algumas laranjas. – Maria sorriu, ela e avó já tinham dito a Daniel que quando quisesse laranjas era só lá ir e apanhar.
Quando chegaram a casa dela. Ficaram ambos parados por um minuto em frente à casa.
- Queres entrar? – Acabou por perguntar Maria.
- Pode ser. – Daniel começou a pensar numa desculpa para que ela o levasse até ao seu quarto. – Eu tinha pensado. – Maria espreitou pela sala de estar dela. – Podias-me emprestar uma das nossas fotografias de quando éramos pequenos?
- Sim, claro. – Maria enfiou-se na cozinha e voltou instantaneamente. – Onde é que a minha avó se meteu? – Ela espreitou para a sala de jantar. – Avó! Já cheguei. – Ela gritou para o andar de cima. Mas não obteve resposta.
- Talvez estejam no quintal. – Sugeriu Daniel.
- A minha avó não gosta muito de ir para o quintal com as amigas. Mas talvez esteja nas traseiras. – Maria foi até á cozinha e saiu para as traseiras. Duas velhas estavam sentadas em cadeiras antigas de piscina. Adormecidas. Maria voltou para trás. – É melhor acordarmos a Dona Felismina. Ela não vai querer ir para casa de noite.
- Deixa estar um pouco mais. Eu vou buscar a fotografia e depois faço-lhe companhia até casa. – Ofereceu-se Daniel. Maria concordou.
No quarto Maria debruçou-se para debaixo da cama e tirou a caixa florida.
- Escolhe a que quiseres. – Daniel pegou nas fotografias. Olhou discretamente para a zona onde estava a mochila de Maria. Não ia dar para colocar lá o diário, estando a Maria no quarto, sem que ela notasse. Maria levantou-se e foi ligar o portátil. Durante essa fracção de segundo, Daniel pegou no telemóvel, colocou-o em número anónimo e ligou para o telefone fixo de Maria.
O telefone, que estava no andar de baixo. Tocou intensamente. Maria levantou-se.
- Já venho. – E Daniel pode ouvi-la a descer as escadas. Olhou para detrás da porta, e correu para lá. Pegou no diário e colocou-o delicadamente dentro da mochila, tendo o cuidado de deixar uma parte de fora, tal como estava no dia anterior quando o apanhou. Ainda com os sentidos bem atentos, ele pode ouvir Maria a subir as escadas, e as duas senhoras de idade a resmungarem. Ele pulou de novo para a cama e pegou na primeira fotografia de grupo que encontrou. Nesse instante Maria entrou no quarto.
- Vou levar esta. – Maria observou a fotografia. Daniel sentiu-se muito aliviado.
- Boa escolha. – Ela sentou-se numa confortável cadeira em frente à sua secretária. – Telefonaram cá para casa em número anónimo e desligaram logo.
- Que estranho – Daniel disfarçou. - Já mostraste estas fotografias à Tatiana?
- Não.
- Então vamos fazer uma montagem de várias fotografias destas e oferecemos-lhe agora quando ela fizer anos.
- Boa ideia. – Maria sorriu. – Se não fosses tu e as tuas ideias originais eu não sei o que iria dar este ano à Tatiana. Ela já tem de tudo. – Maria dactilografou qualquer coisa no teclado. – Olha, é melhor ires andando. A Dona Felismina quer ir fazer o jantar.




domingo, 4 de outubro de 2009

O choro do violino



Um nervoso miudinho tinha possuído todo o seu corpo. Era certo que em toda a sua vida o fez, mas não conseguia evitar de o sentir. As cortinas correram e ficou perante uma multidão de pessoas, vestidas com roupa cara e formal. Todas elas se tinham deslocado ali, naquela noite, só para a ver e a ouvir tocar. Respirou fundo, aproximou o violino do queixo e começou a tecer uma melodia que compusera há muito pouco tempo. Tudo estava em silêncio, há excepção do doce choro do violino. No público, algumas pessoas tinham os olhos fechados, outras permaneciam atentas, observando-a, mas todos estavam hipnotizados por aquele música. Quando terminou, uma onda de palmas e pessoas levantadas estoirou. Ela agradeceu e saiu do palco.

- Mais uma vez uma excelente actuação. – Disse um homem de longas barbas brancas.
- Obrigada maestro. – Ela guardou o violino na mala de transporte.
- Foi magnífico. – Disse uma mulher, gorducha, que se aproximou dela e lhe tocou levemente no antebraço. – Não vai já embora, pois não?
- Receio que sim. Hoje estou-me a sentir um pouco indisposta. – Ela disse, enquanto pegava na bolsinha chique e procurava o seu casaco no cabide.
- Mas está doente? – Perguntou a mulher. – Parece que a noto um pouco pálida.
- Devo ter apanhando um resfriado. – Ela dirigiu-se à saída. – Vejo-a para a semana. Boa noite. – E saiu, deixando o maestro e a mulher a olhá-la.
- Espero que ela melhor depressa. – Disse o maestro. A mulher acenou com a cabeça.
Lá fora nevava. Era pleno Inverno. Um manto tranquilizante cobria toda a cidade, iluminado pelas luzes nocturnas. Ela carregou no botão para destrancar o carro, colocou a mala do violino no banco ao lado, junto com a bolsinha e apertou o cinto. Encostou a cabeça durante uns segundos no encosto. Doía-lhe a cabeça. Rodou a chave e guiou em direcção a casa. A cabeça doía-lhe de forma esgotante, ela lutava para se manter atenta à estrada escorregadia. Então estacionou numa das ruas. Respirou fundo de impaciência, tudo o que ela queria agora, era chegar a casa e tomar uma aspirina.
Talvez seja melhor chamar um táxi. Pensou para consigo. Tacteou à procura do telemóvel na bolsinha. E ligou. Muitas estradas estavam cortadas devido ao excesso de neve, o táxi ia demorar a chegar, visto ter que dar uma grande volta para chegar até ela. Voltou a colocar o telemóvel na bolsa, impaciente.
Basta manter os olhos bem abertos. Pensou. Dentro de dez minutos estarei em casa. Voltou a rodar a chave e pôs-se a caminho. A dor pulsante de cabeça era irritante. A sua impaciência crescia. Acelerou um pouco. Mas foi uma má opção. Na primeira curva o carro derrapou e foi contra uma montra.
- Estes eram os únicos pertences no carro da sua mulher. – Disse o guarda. Entregando a bolsinha, a caixa do violino e alguns documentos que estavam no porta-luvas. Um homem loiro, de olhos ensonados e muito vermelhos pegou nas coisas. Ele olhou para a caixa do violino e lágrimas surgiram-lhe nos olhos. Uma mãozinha pequena agarrou-lhe a mão. Uma menina de cabelo cor de fogo, liso, com grandes olhos verdes olhou-o. Também ela chorava.
- Não te preocupes querida. – Ele disse. – A mamã foi para um lugar melhor.
- Então, porque também estás a chorar papá?
- Porque já estou com saudades da mamã. – E levou a menina para casa. Uma vez em casa, deito-a na caminha cor-de-rosa. – Dorme bem, meu anjo.
Era como se lhe tivessem roubado metade da sua alma. Um vazio mortal preenchia parte do seu coração. Ele nunca mais a poderia ouvir tocar para ele. Ele nunca mais a iria ouvir rir. Ele nunca mais ia sentir o calor dela, nos dias em que chegava tarde do trabalho e se enroscava nele. Ele nunca mais ia poder cheirar o perfume dos seus cabelos fogosos. Foi até à sala, onde ela costumava praticar. Tirou o violino da caixa e colocou-o no suporte. Ficou a olhar para ele por um longo tempo, até que se deixou de dormir no sofá. Era um sonho tão realista. Ele estava no sofá e ela tocava violino para ele, sorrindo-lhe.
- Papá! – Chamou a menina, dando um toque no seu braço. – Papá!
- O que foi querida? – Ele acordou, desiludido por aquele sonho ter durado tão pouco. Tentou endireitar-se e sentiu uma dor nas costas. – Foi má ideia o pai ter-se deixado de dormir no sofá.
- Papá! – Ela repetiu, olhando arregalada para o pai.
- Sim?
- Tiveste a tocar violino?
- Como assim, fofinha?
- Eu ouvi alguém a tocar violino. – Ela disse. – Parecia mesmo a mamã.
- Meu anjinho! – Ele puxou a menina para o seu colo. – Quando sentimos muito amor por uma pessoa e temos saudades, por vezes a nossa mente faz-nos uma surpresa. E deixa-nos sentir o cheiro dessa pessoa e, às vezes, ouvir essa pessoa.
- Tu não ouviste papá? – A menina olhava para o pai, com os olhos muito abertos. Ela era demasiado parecida com a mãe. Tanto que lhe causava mágoa, por o fazer lembrar a beleza da sua mulher. Mas ao mesmo tempo, ele amava aquela menina. Era a única coisa preciosa que lhe restava agora na sua vida. Ele abraçou-a.
- Não, não ouvi. – Ele levantou-se com ela ao colo. – Mas sonhei com a mamã. Ela estava a tocar violino para mim. – A menina sorriu. – Agora vais dormir. Foi um dia demasiado longo. – A menina deu um beijo na bochecha do pai e enrolou-se nos lençóis.
Ele foi até ao seu quarto, ia tentar dormir um pouco. Mas quando se sentou na cama e se preparava para dormir, ele ouviu um choro familiar. O choro do violino da mulher. Os olhos abriram-se-lhe e ele pulou da cama. Parecia tão real. O corredor estava escuro, ele caminhou devagar em direcção à sala. Quanto mais se aproximava, mais intenso o choro era. Aquela melodia, intensa, que ela treinara todos os dias do ultimo mês. O coração dele começou a bater intensamente. Como podia ser aquele som, fruto da sua imaginação se era tão intenso? Ele aproximou-se da sala, passo a passo, lentamente. E abriu a porta de repente, acendendo a luz ao mesmo tempo. A sala estava vazia. Não havia mobília suficiente para esconder uma pessoa. Ele levou as mãos à cara e chorou. Mas, ele sentiu um odor familiar. Ele aproximou-se do violino e esse odor intensificou-se. Era o perfume que invadia os cabelos cor de fogo da sua mulher. Tão intenso que parecia mesmo que ela estava ao lado dele. Ele tocou no violino com a mão. E olhou em redor na sala. Sentiu uma calma a envolve-lo, sentiu um calor agradável. Olhou em direcção ao ar condicionado, mas estava desligado.
Foi-se sentar no sofá. Ele não tinha sido o único a ouvir o violino. A filha também tinha ouvido. Sentiu-se perto da mulher que amava, não sabia se era fruto da sua imaginação, se uma resposta ao desgosto da morte da mulher. Mas ficou ali sentado, por que a conseguia sentir. E quer fosse ilusão ou não, era tudo o que ele podia ter naquele momento, que mais se assemelhava à companhia dela.

Henry Evaristo & Victor Meloni

      Venho informar, todos os leitores do meu blog, do lançamento de, não de um, mas de dois grandes livros. São dois frutos de autores consagrados pelos majestosos contos que publicam em seus blogs. De dois grandes mestres de contos de terror, apresento-vos:


UM SALTO NA ESCURIDÃO, de Henry Evaristo


e

ANTOLOGIA DO ABSURDO, de Victor Meloni


Podem ainda visitar os seus blogs em:
http://camaradostormentos.blogspot.com/                                        (Henry Evaristo)
http://contosominosos.blogspot.com/                                                (Victor Meloni)


Para saber mais sobre o livro "Um salto na escuridão” podem também visitar http://livrodeterror.blogspot.com/