segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Toque da noite: V

Maria tinha acabado de lavar a loiça. A avó dela tinha-se deitado, uma acção de rotina que ela seguia à risca desde que Maria se lembra. A típica sesta alentejana.
Um toque na porta fê-la pular. Espreitou pela janela da sala e foi abrir.
- Boa tarde! – Daniel parecia mais alegre que a noite passada.
- Olá. – Ela desviou-se para que ele pudesse entrar.
- A minha mãe oferece beringelas. – Ele tirou o saco da mochila e foi colocá-lo na bancada da cozinha. Maria seguiu-o.
- Agradece-lhe por mim e pela minha avó. – Ele sentou-se num banco. Maria arrumou as beringelas na dispensa da cozinha. Daniel ficou a observá-la. – Já sabes do acidente do tio da Tatiana?
- Já. Sabes alguma coisa sobre o estado deles?
- Parece que o senhor Manuel é o que está mais mal. Os gémeos estão bem e a Teresa, parece-me que também se magoou mas não é nada de muito grave. – Maria sentou-se ao lado dele no banco. Ela girou um pouco de maneira a ficar na direcção de Daniel. Daniel olhou-a e deu um pequeno sorriso. – Tenho que te perguntar uma coisa. – Ela disse.
- Sim?
- O que é que te fez mudar de opinião em relação ao que te contei? – Daniel sabia que mais tarde ou mais cedo teria que ouvir aquela pergunta. E ele decidiu manter-se perto da verdade. Ocultando apenas a parte de que, ele não estava totalmente convencido de que os sonhos de Maria eram realmente verdade, embora ela acreditasse nisso.
- Tu não tinhas motivos para me mentires sobre um assunto desses. Mesmo que fosse para te desviares de alguma coisa que não me querias contar. – Maria ficou a pensar na resposta.
- Isso era a única coisa que eu não queria contar. – Ela desviou o olhar e fixou-o no fruteiro que estava sob a bancada. – Não é um assunto para se falar assim.
- Eu sei. É delicado. Mas tu precisavas de falar com alguém. E eu sou teu amigo, sempre pudeste falar comigo sobre isso, principalmente quando sentias necessidade. – Ele pegou numa maçã de plástico do fruteiro. – Já nos conhecemos há tanto tempo. – Ele brincou com a maçã, passando-a de uma mão para a outra. – Não devíamos ter este tipo de segredos. – Daniel pensou na ironia das suas palavras. Ele também tinha um segredo de Maria. Ou melhor, dois. Dois que temia contar-lhe, mesmo sendo ela a sua melhor amiga.
- Pois não. – Ela pegou na maçã que Daniel tinha na mão. – Eu também gostava de poder contar à Tatiana. – Daniel não disse nada. Maria pôs a maçã no fruteiro. – Achas que eu devia? – Daniel imaginou Tatiana ao saber daquilo tudo.
- Ela é muito sensível a essas coisas. Não acho que seja uma boa ideia. – Tatiana acredita muito em tudo. Isso ia ser difícil, porque assim Maria teria alguém a encorajá-la com tudo aquilo. – Ela ficaria assustada de morte se soubesse que tu podias prever mortes de pessoas.
- Não é de todas as pessoas, só algumas. – Daniel calou-se por uns segundos. Maria levantou-se e fez sinal para Daniel a seguir. Foram até ao quarto dela. Maria debruçou-se e espreitou por debaixo da cama. Daniel já tinha entrado milhares de vezes naquele quarto. As cortinas lilases ainda eram as mesmas de quando eram pequenos, mas a decoração já não era de uma menininha que brincava com bonecas. A grande cama de ferro, pintada de preto ocupava o centro do quarto, encostada à parede e de frente para a pequena varanda, a única fonte de luz natural naquele quarto. Um leve e doce odor perfumado envolvia o quarto de Maria, cheirava a baunilha. Daniel inspirou profundamente.
- Aqui. – Maria sentou-se sob a sua cama, levando uma caixa com um padrão floral. Daniel sentou-se na beira da cama, de modo a ficar de frente. Suavemente, Maria retirou a tampa e pegou no que parecia ser um monte de fotografias antigas. – A minha avó tinha-as guardado no sótão. Ela não se lembrava, mas no outro dia eu descobri-as.
Um sorriso involuntário surgiu nos lábios de Daniel. As sobrancelhas relaxaram e uma nostalgia agradável envolveu-o.
- Olha só. – Pegou numa fotografia em que junto à ribeira quatro crianças brincavam. Uma menina de cabelos muito compridos e muito loiros, separados em dois totós altos, segurava um molho de flores selvagens numa mão. A outra menina estava de joelhos no chão, com as bochechas muito vermelhas, tinha o cabelo liso num corte recto ao longo da mandíbula, e uma franja que quase lhe tapava os olhos muito vivos e verdes. Ao lado, um rapaz de cabelo preto, com nariz recto, sorria revelando a falta de alguns dentes, e tinha os joelhos esfolados. Atrás do grupo, um outro rapaz, um pouco mais gorducho e de cabelo loiro, estava a fazer beicinho, com o cabelo desalinhado e os braços cruzados.
- Tinha-mos sete anos. – Maria riu. – Foi no dia em que obrigámos o Tiago a fazer de vilão. Lembras-te?
- Se me lembro. – Daniel riu. – E tu ainda tinhas o cabelo liso na altura.
- E a minha mãe obrigava-me a ter o cabelo curto. – Maria fez uma careta. Daniel pegou noutras fotografias. Passaram quase duas horas nisso. Recordando os velhos tempos. E a gozar com a forma como se vestiam e pensavam.
- Os teus pais quiseram fazer-te uma festa surpresa, mas tu já sabias. Eu e a Tatiana fomos logo contar-te.
- Convidaram quase todas as crianças da nossa idade cá da aldeia. E tu brigas-te com o João por causa do último balão com confetis.
- E depois ele foi a chorar a contar à tua avó. Porque eu lhe atirei com um bocado de sumo para cima da sua t-shirt do Batman.
Eram lembranças doces. Maria sentia-se muito confortável em poder passar algum tempo a pensar em pequenos momentos que eram tão especiais na sua vida. Daniel, por outro lado, tinha saudade, mas no fundo estava agradecido por poder estar com Maria naquele momento. Após tantos anos em que só se viam num fim-de-semana de Verão, ou na altura da Páscoa e outros feriados mais duradouros. Daniel sentiu o seu humor mudar. Lembrou-se da causa para a vinda de Maria até a aldeia.
Enquanto Maria ia remexendo e falando sobre as fotos, Daniel passou os olhos pelo quarto, meticulosamente. Olhou para um grupo de livros que se amontoavam na secretária, procurou pela pequena prateleira mas não encontrou nada.
- Eu nem sei o que é feito daquele fato de macaco do Tiago. – Maria falava.
- Nem eu. – Daniel respondeu, meio distraído. Então os seus olhos fixaram-se na mochila azul que estava pendurada num cabide detrás da porta. Um pouco da capa do diário de Maria era visível. A questão era como pegá-lo e lê-lo sem que Maria notasse. - Maria! – A avó Medina gritou do seu quarto.
- Vou já. – Ela respondeu. – Já volto.
- Sim. Eu vou ver o resto das fotos. – Daniel pegou num molhe de fotografias e fingiu vê-las. Maria saiu do quarto. Assim que a ouviu falar com a avó, Daniel levantou-se num salto, pegou no diário, e folheou-o. Havia demasiadas páginas escritas. Ele não iria ser capaz de ler tudo. Tentou pensar rapidamente numa solução. Mas sentiu os passos de Maria a aproximarem-se, e quase sem pensar colocou o diário dentro da mochila dele.
- A minha avó às vezes consegue ser mesmo chata. – Maria resmungou. – Chamou-me só para me dizer para não me esquecer de telefonar à Tatiana, e para quando o fizesse que lhe fosse logo contar as novidades. – Daniel sorriu.
- Não é só a tua avó. – Ele fingiu terminar de ver as fotografias. – Belos tempos. – E colocou as fotografias na caixa. – Se não precisares de mim eu vou ter que ir para casa. – Daniel levantou-se. – Prometi à minha mãe que dava uma arrumação ao meu quarto.
- O teu quarto está sempre arrumado. – Maria disse-lhe surpresa. Daniel já se tinha esquecido do quão difícil era manter a coerência de um mentiroso. E Maria conhecia-o bem. – Eu estive à procura de um cabo para o amplificador. Perdi-o e não o achei em lado nenhum.
- Espero que o consigas encontrar.
Daniel praticamente voou na bicicleta pelo caminho de terra. Se Maria desconfia-se que ele lhe tinha roubado o diário, ele nem queria imaginar o que aconteceria.
Largou a bicicleta no chão da garagem e correu para o seu quarto. Fechou a porta e sentou-se na cama. Retirou cuidadosamente o diário da mochila, e sentiu o leve cheiro a baunilha. Embora fosse um cheiro sumido, dava para sentir a familiar fragrância. Abriu a capa e parou na primeira página. Uma dedicatória escrita a azul-turquesa, na primeira folha, branca sem linhas.
“ Para a nossa querida Maria, a nossa melhor amiga, para poder escrever os seus segredos e desabafos, e assim nos contar tudo exactamente como se passou quando voltar para casa. Muitos parabéns! Das tuas amigas, com quem poderás sempre contar, para o bem e para o mal, que jamais te deixarão sozinha, Raquel e Soraia.”
Daniel já tinha ouvido falar delas. São as duas amigas de Maria lá da cidade dela. Saberiam elas a verdade sobre Maria? Passou a folha e perdeu-se na leitura da vida de Maria.
“ 5 de Setembro de 2008
Tenho medo do que me espera. Vou morar com a avó Medina. Ela está sozinha e os meus pais vão deixar-me ir para ver se a avó consegue lidar com o meu problema. Embora com a idade ela não seja a mesma pessoa com o mesmo tipo de consciência adulta, ela continua a ter muitas das qualidades que tinha como educadora. Na opinião deles eu estou muito doente e não sabem como lidar com isso. A minha mãe acredita que já não sou mais eu, que algum tipo de espírito se apoderou do meu corpo. A semana passada, um padre espanhol, conhecido pelos seus feitos como exorcista veio cá à cidade.
Tal como eu temia, os meus pais levaram-me. Foi a coisa mais estúpida em que me enfiei. O padre ficou surpreso por eu não tomar nenhuma reacção à sua oração e aos salpicos de água benta. Ele fez-me perguntas do tipo “quem és tu? Porque ocupaste este corpo?” Eu respondi-lhe que era simplesmente eu, que não havia mais ninguém dentro do meu corpo. Estava calma, apenas um pouco chateada por estar toda salpicada de água e presa a uma cadeira desconfortável de madeira.
Foi um momento embaraçoso, mas eu não fiz nada. Só podia ser paciente com os meus pais, embora a minha mãe já não fale comigo como dantes. O meu pai tenta falar comigo, de coisas normais, mas até ele se contem. Noto um certo cuidado quando ele fala comigo.
Tudo porque fui amaldiçoada com estes pesadelos. Nem sempre fui assim e estou a chegar a uma altura da minha vida em que me sinto muito deprimida. Na escola já corre boatos sobre o que se passa comigo. Sou olhada de lado e muitas das pessoas que falavam abertamente comigo e me cumprimentavam, deixaram de o fazer. Talvez por medo. As únicas pessoas que ainda continuam a falar comigo e que nada mudou na minha relação com elas, foram a Soraia e a Raquel. Contei-lhes tudo o que se passava e elas acreditaram logo. Desde então têm feito algumas pesquisas e apoiam-me sempre. Espero que tudo melhor quando for para a aldeia. ”
Daniel mudou de página. Mas não encontrou nada relevante nas próximas leituras. Até que chegou ao dia em que Maria teve o primeiro pesadelo na aldeia.
“ 10 de Janeiro de 2009
Voltou a acontecer. Não sei o que faça. A avó já sabe e acha que foi apenas um mau sonho. Mas eu sei que não.
Sonhei com o senhor da mercearia, as vozes e as sombras humanóides estavam lá. Não deixo de ter a sensação de que as vozes que oiço me são familiares. Mas já não sei mais o que pensar, sinto-me confusa e mais só do que o costume. A minha avó não está em condições para pensar correctamente e as minhas amigas não estão perto de mim. Tentei falar com elas hoje, mas a Soraia estava numa festa de anos e a Raquel foi para a República Dominicana com os pais.

Sinto-me tão fraca, com um buraco dentro de mim sugando toda a minha felicidade. Não posso fazer nada, não sei ao certo a hora a que vai acontecer, mas será de noite. Devia ir falar com o senhor Medeiros, mas isso só me ia trazer mais tristeza. Eu não quero voltar a passar pelo mesmo que passei na cidade. ”
Vários pontos enrugados no papel eram sinal de que Maria tinha chorado. Daniel tinha uma certeza, ele acreditava no que Maria lhe tinha contado. Mas ainda tinha as suas dúvidas. Voltou a página.
“ 17 De Janeiro de 2009
Já aconteceu. Todos estão agitados à procura do senhor Medeiros. E eu aqui a escrever, sabendo coisas que mais ninguém sabe. Ele foi-se para sempre.

Ontem à noite a Soraia ligou-me. Tivemos a falar quase uma hora. Ela acha que eu estou a fazer bem. Que é melhor não me envolver de maneira nenhuma nesta situação, ser apenas uma observadora. É muito difícil. Mas eu não espero que a Soraia compreenda. O peso da culpa que recai sob os meus ombros esmaga-me. E eu já nem sei como ser eu mesma. Estas palavras fazem-me lembrar a minha mãe.
Oh deus. Como é difícil ter que carregar estas chagas. Não sei se aguento. Sinto, literalmente uma dor no peito. É tão doloroso que por vezes tenho que sair de casa e ir caminhar. Digo à avó que vou dar uma volta para não perder a forma, mas na verdade vou caminhar a passo apreçado até á ribeira. Ajuda-me a aliviar a dor e os nervos, embora não os elimine.
Pensei em contar o meu segredo à Tatiana e ao Daniel. Mas mudei de ideias, por conselho da Soraia. Daniel jamais iria acreditar, ele é demasiado céptico em relação a este tipo de temas. E a Tatiana provavelmente ia ficar com medo de mim. Eu não os quero afastar. Neste momento são das melhore coisas e das poucas que restam na minha vida.”
Nas outras páginas Maria não fez mais referência ao sonho. Ela descrevia apenas o tão bom que era poder desfrutar da natureza, dos velhos amigos a tempo inteiro e das sobremesas da avó. Entretanto falou da nova escola. Daniel não pode evitar de ler a parte em que ela falava dos rapazes que conheceu, e de quando reviu amizades de infância que não via há anos. Havia um tipo que ela achava muito giro que trabalhava na pizzaria. Daniel fez uma nota mental de que se fosse almoçar com ela iria evitar a pizzaria. Então prendeu-se numa parte do diário mais recente. Do dia de ontem. Ela fez uma descrição perfeita do que se passou na ribeira e do pedido de desculpas que ele lhe fez. Mas a parte a seguir, encheu-o de uma excitação e felicidade tonta.
“ Parece estranho para mim, o quão adulto Daniel pareceu hoje. Fez-me olhá-lo com outros olhos. Deixei de o ver como o miúdo tonto que achava piada a atirar papelinhos cheios de saliva para os cabelos da Tatiana. Realmente houve coisas que mudaram aqui. Ou talvez não. E, só agora, eu esteja a ver que afinal tenho amigos verdadeiros neste lugar. Descai-me na ribeira, mas nunca imaginei que o Daniel acabasse por reagir assim. Mal posso esperar para contar à Soraia e à Raquel, elas vão cair para o lado de surpresa.
Estou muito satisfeita por ter alguém como o Daniel. Ele é a sorte que me bateu à porta. E não posso evitar de sentir um grande carinho por ele. Céptico como ele é, acreditou em mim. É verdade que não aceitou logo, mas acabou por acreditar na minha palavra ao invés de todo o seu sentido racional. Como posso agradecer-lhe? Irei apenas ser a amiga sincera e dedicada que ele merece. Jamais lhe guardarei segredo do que for.”
Amiga dedicada. Daniel pensou. E toda a sua excitação se foi. Fechou o diário e não quis ler mais nada. Foi um grande sacrifício não ler, mas a verdade é que já tinha conseguido o que queria. Seria possível, aquilo estar mesmo a acontecer com ela? Seria possível, ela ter mesmo os sonhos premonitórios? Mas como? Não lhe parecia lógico, podia ser algum tipo de coincidência misturado com algum tipo de confusão da parte de Maria. O senhor Medeiros era um homem que não era propriamente de feições suaves. Muitos dos miúdos tinham medo de ir à mercearia porque diziam que ele era um lobisomem. Talvez isso tivesse tido algum tipo de influência nela.
Guardou o diário de Maria na mochila e pensou numa desculpa para voltar a colocá-lo no lugar.



terça-feira, 15 de setembro de 2009

Toque da noite: IV

- Achas que isto é hora de estares deitado? – Uma mulher gritou enquanto entrava no quarto de Daniel. Ele nem se moveu na cama. – Onde é que isto já se viu? – A mulher abriu a janela de maneira a que intensos raios de Sol banhassem todo o quarto. Daniel colocou a almofada sob a cabeça.
- Mãe! Estou de férias. Tenho direito a uma manhã! – Ele resmungou por debaixo dos lençóis.
- A manhã já acabou quase a uma hora atrás. – Daniel ouviu passos a aproximarem-se. – Já é quase uma da tarde! São horas de ires almoçar.
- Só mais cinco minutos…
- Ok! Cinco minutos com muita música. – A mulher foi até a aparelhagem de Daniel e ligou na parte do rádio. Uma música dos Green Day começou a tocar, de uma estação de rádio local. – Parece-me que o som está bom. É a altura a que costumas por isto a tocar. – Não se ouviu nenhuma porta a fechar. Carlos levantou-se e o quarto estava vazio. Foi em direcção à aparelhagem e baixou o som. A mãe dele está sempre a ralhar com o volume a que ele põe as musicas, e as vizinhas também resmungavam, até se habituarem. Ele foi até à casa de banho e depois desceu até à cozinha. Daniel vive sozinho com a mãe desde há quatro anos atrás. O pai morreu de cancro no pulmão, deixando-os sozinhos.
- Bom dia, mãe. – Ela estava junto ao fogão, mexendo numa panela de puré de batata.
- Boa tarde, queres dizer. – Daniel sorriu.
- Ontem cheguei tarde.
- Eu sei. Onde estiveste até aquela hora?
- Fui a casa da Maria pedir desculpa por uma coisa que fiz. – A mãe levantou uma sobrancelha. – E depois fui até à ribeira para pensar um pouco.
- Arrependeste-te de ir pedir desculpas à tua amiga?
- Não mãe.
- Valha-me Deus! É a primeira vez que tenho conhecimento de que pediste desculpa a alguém. Costumas ser tão orgulhoso e teimoso.
- Mas desta vez tive que pôr o orgulho e a teimosia de lado…
- Gostas mesmo dela. – A mãe de Daniel pousou a panela na bancada, e ficou a olhar para ele. Os seus olhos indicavam algo que ele não se sentia confortável ao testemunhar. Era aquele olhar materno de quando uma mãe vê o filho crescer. – Dentro de um ano vais para a faculdade. – Os olhos começaram a brilhar. – Às vezes esqueço-me de como estás crescido.
- Oh mãe, não comeces! – Daniel refilou enquanto enchia o prato com sopa de hortaliça.
- Desculpa. Mas é daquelas coisas que uma mãe tem que falar. – Ela sentou-se junto de Daniel, servindo-se também de sopa. – Já pensas-te para que faculdade vais?
- Já sei para que possíveis faculdades vou, mas não sei qual escolher em primeiro. – Daniel levou uma colher à boca. A mulher fixou o prato que tinha á sua frente.
- Vou-me sentir sozinha quando te fores embora.
- Podes trazer a avó para cá. – Ele olhou para ela. – Ela vem de certeza com toda a vontade.
- Eu sei, mas sabes que no estado de saúde dela está melhor na cidade. Pelo menos se ela se puser mal, está mais perto do hospital.
- A avó da Maria também vai ficar sozinha, provavelmente. Sempre podes ir visitá-la. – A mulher olhou para ele.
- A senhora Medina vai quase de certeza para casa do filho. Ela só não foi para lá depois da morte do marido, porque a neta se ofereceu para vir tomar conta dela.
- Com é que sabes isso?
- É o que toda a gente diz na aldeia. A miúda é uma jóia de pessoa, vem buscar as coisas à mercearia, faz companhia à avó, vem à farmácia buscar os medicamentos e até pede conselhos às farmacêuticas sobre os cuidados que tem que ter com os diabetes e a tensão arterial da avó.
- É. – Daniel sabia pelo menos parte da história de Maria.
Anteontem, quando ele e Maria tinham ido dar uns mergulhos à ribeira, ela parecia triste. Daniel tentou-a distrair falando sobre o que se tinha passado com o senhor Medeiros, mas ela começou a chorar descontroladamente. Daniel ficou muito atrapalhado, embora já se tenha deparado com uma mulher a chorar assim, a sua mãe no dia do funeral do pai, ele nunca se deparara com uma rapariga da idade dele naquele estado. Passou um braço sob os ombros e tentou perceber porque é que a amiga chorava. Maria desabafou tudo inesperadamente. Daniel nem teve tempo de pensar como deve ser em tudo o que Maria lhe contava.
- O que é que estás a dizer Maria? Isso não é …
- Possível? – Ela soluçou fortemente, libertando-se do seu abraço. – É possível sim! Lembras-te quando eu te disse que estava com um mau pressentimento acerca do senhor Medeiros? – Daniel acenou e de repente começou a abanar a cabeça.
- Mas isso não quer…
- Eu tinha visto tudo. Eu sonhei com o desaparecimento dele! – Grossas lágrimas caíam pela face oval de Maria. Daniel sentiu necessidade de a confortar, mas ela tinha-se afastado dele, agitando os braços nervosamente enquanto falava. – Há anos que tenho estes estúpidos pesadelos. Os meus pais não aguentaram e mandaram-me para a minha avó, para não ser enviada para um outro sitio qualquer de malucos!
- Estás perturbada com alguma coisa. – Daniel tentou aproximar-se, mas Maria afastou-se. – Tu não podes ter sonhado com o que se passou antes de acontecer.
- Mas sonhei. – Ela encostou-se a uma grande rocha. – E não fiz nada em relação a isso.
- Maria. Tu estás confusa. – Daniel tentou racionalizar aquilo que ouviu. E passou-lhe Tatiana pela mente. A perita em partidas. – Por vezes acontece…
- Não Daniel! Tu não estás a perceber. – Ela levantou-se e afastou-se mais um pouco dele. – Eu sonho com estas coisas antes de acontecerem.
- Maria, eu percebo que estejas perturbada com alguma coisa. Se não me queres contar tudo bem. Mas não esperas que eu acredite nisso, pois não?
- O quê? – Maria pareceu levar com um chapo de água gelada. – Mas é verdade.
- Eu não acredito nisso de prever o futuro seja através de uma bola de cristal, pela leitura das linhas de uma mão ou por sonhos. – Maria olhou esbugalhada para Daniel, e mais lágrimas apareceram. Ele afastou-se dela e virou-se para a ribeira. – Eu já tinha notado que hoje não estás nos teus dias. Mas se não me quiseres contar porquê, não precisas de me falar em sonhos premonitores.
- Daniel…
- Por amor de Deus. – Ele voltou a olhar para ela. – Eu gosto de ti Maria, e sou teu amigo de verdade. Mas não gosto que faças de mim parvo. – Ele foi até à rocha e pegou na sua mochila.
- Eu nunca fiz de ti parvo. Estas coisas simplesmente me têm acontecido. Não é fácil lidar com elas. E porque motivo eu te ia mentir?
- Eu não sei. Mas parece-me que estás a gozar comigo. – E afastou-se dela sem olhar uma única vez para trás. Sabendo que os olhos de Maria o queimavam por trás. Mas sentia que estava a ser gozado, vítima de uma piada tonta, provavelmente planeada com Tatiana.
A cena foi relembrada na cabeça de Daniel. Na verdade ele ainda não acreditava nos sonhos de Maria, mas foi incapaz de sossegar nessa noite, sabendo que ela poderia estar triste com ele.
- Ouviste? – A mãe agitou uma mão na frente de Daniel.
- Desculpa mãe. Estava distraído a pensar.
- Eu estava a dizer que hoje, se fores ver a Maria podia levar-lhe algumas beringelas. Temos muitas e já estão maduras. Vão começar a estragar-se se não forem comidas agora.
- Claro. Eu levo-lhe algumas.
- É verdade. O tio da Tatiana, o senhor Manuel teve um acidente de carro. Ia com a família toda e parece que ele está muito mal.
- Oh. Quando é que isso foi?
- Parece que foi de manhã cedo. Acho que a Tatiana e os pais já foram para a cidade ter com eles ao hospital.
- Tenho que falar com ela depois.
- Faz isso.
Depois de almoço, Daniel foi apanhar beringelas à horta. A ideia do acidente do senhor Manuel assombrou-o por algum tempo. Mas depois lembrou-se de Maria. Ele sabia que alguma coisa se passava com ela. Ela não era do tipo de mentir, alguma coisa devia estar a correr mal na vida dela. Mesmo influenciada pelas parvoeiras de Tatiana, Maria jamais gozaria com ele. Ela não era desse tipo. Aquela conversa do pressentimento de Maria era verdade, mas não provava nada. Mas foi isso que o convenceu de que Maria tinha mesmo um problema e de que não era uma partida. Daniel foi pedir desculpa, mas sabe que vai ter que fazer mais do que isso. Ele desconfia que ela tem algum tipo de alucinações. A avó de Maria não é o tipo de pessoa que esteja em condições de notar essas coisas. Por isso não ia ser uma grande ajuda a Daniel. Mas Daniel lembrou-se de algo que Maria tinha sempre com ela. Um caderno de capa roxa, com o desenho de uma meia-lua preta na capa. O diário de Maria. Se Maria não lhe contasse a verdade, ele iria ter que ler o diário dela.
- Isso está errado… – Daniel sussurrou para ele mesmo. Enquanto enfiava com as beringelas num saco.
- A falar sozinho? – Uma voz em tom de gozo soou.
- A pensar alto. – Daniel estreitou os olhos. – É um pouco diferente.
- Eu não costumo pensar alto. – Um rapaz musculado, alto e robusto estava encostado á parede que limitava o quintal.
- Oh. Tu pensas? – Daniel gozou.
- Não te estiques! – Rosnou o rapaz de cabelo ruivo, debruçando-se ainda mais no muro, com um dedo esticado.
- Tenho mais que fazer, do que discutir coisas óbvias contigo. – Daniel virou-lhe as costas e foi para casa, carregando o saco cheio de beringelas numa das mãos.
João era a pessoa mais irritante que ele conhecia. E tinha logo que ser seu vizinho. Na sua opinião era burro que nem uma parede, e convencido a dobrar. Ele e a sua mota eram o centro do mundo naquela sua cabeça de vento. Daniel abanou a cabeça, como a tentar afastar o João da sua mente. E voltou a concentrar a sua atenção num plano para conseguir ler o diário de Maria, sem que ela o apanhasse.

Toque da noite: III

A campainha tocou freneticamente. Uma onda de excitação passou por Tatiana. Ela correu em direcção à porta, disfarçando quando passou pela sala de estar, para não chamar a atenção da sua mãe. Abriu a porta sem espreitar para ver quem era.
- Bom Dia J… Maria?
- Não estavas mesmo nada à minha espera.
- Nada mesmo. Entra. – Maria entrou e cumprimentou a mãe de Tatiana, que estava a costurar na sala. Depois foram enfiar-se no quarto de Tatiana. – Tenho novidades. – Tatiana esparramou-se de barriga para baixo na sua cama, balançando a sua longa trança aloirada.
- Conta. – Maria deixou-se enterrar no grande puff verde.
- Ai. – Tatiana guinchou de excitação. – Ontem o João teve cá em casa quase o dia todo. A mãe dele veio ajudar a minha, e ele veio ver a mota nova do meu irmão. E acabou por ficar cá e almoçar.
- E é esse o motivo dessa excitação toda?
- Não. – Tatiana sentou-se na cama. – Nós agora andamos. – Maria ficou calada com um meio sorriso na cara. – Não dizes nada?
- Estás a gozar?
- Estou a falar a sério. – Maria pulou para o lado de Tatiana e abraçou-a. Tatiana ria que nem uma tonta.
- Há anos que gostas dele… como é que isso aconteceu?
- Da forma mais natural. – Tatiana tinha muita expressividade nos seus grandes olhos castanhos. O que tornava fácil para Maria perceber a quantidade de emoções com que Tatiana lidava no momento. – Acabámos por ficar sozinhos na garagem e uma coisa levou à outra. Quando dei por mim já estava agarrada a ele.
- Valha-me Deus. Tu saíste-te cá uma tarada. – Tatiana riu e deu uma pancada forte com uma almofada a Maria.
- Eu não sou tarada. – Maria riu também e pegou noutra almofada e lançou-a fortemente em direcção das costas de Tatiana. – Ok. Já chega. Esta trança deu trabalho a fazer.
- Que croma. – Maria pousou a almofada. E encarou a sua amiga. – Estavas à espera dele quando eu entrei.
- Sim. Ele vem-me buscar logo depois de almoço. – Tatiana pegou na almofada e apertou-a., enquanto se sentava na cama com as pernas cruzadas. Virando-se totalmente de frente para Maria. – Vamos até ao jardim.
- Quem diria. Tu e o João. – Maria girou a sua posição, também de modo a ficar de frente para Tatiana. Mas com uma perna debaixo da outra que caía de lado na cama. – Eu sempre soube que não ias ultrapassar essa paixoneta que tens por ele há anos. Mas nunca pensei que ele correspondesse alguma vez.
- E é. – Tatiana voltou a sorrir. Ela quase que parecia brilhar de felicidade. - Ele não disse que andávamos propriamente. Mas depois de me beijar nós ficámos sentados naquele banco de jardim que eu tenho na garagem, abraçados. – As bochechas dela ficaram subitamente vermelhas. – O meu irmão acabou por aparecer. O João ficou meio envergonhado e largou-me. E acho que o Tiago topou tudo.
- Ele tem sempre um bom sentido de oportunidade, não tem?
- É, o Tiago tem um faro apurado para os momentos mais inoportunos. - Maria riu e Tatiana também.
- Ele não está em casa?
- Está na garagem. Desde que comprou a mota que não para de a limpar, ou fica simplesmente a olhar para ela. E vou-te avisar. É melhor afastares-te dele quando está junto à mota, senão dá-te uma seca sobre motas.
- Vou ter em conta isso quando sair.
Tatiana não podia estar mais feliz. Ela ia tagarelando sobre a sua mais recente relação, mas Maria só ouviu cerca de metade do que ela disse. O dia estava quente, embora o ar condicionado tornasse o ambiente do quarto de Tatiana agradável. Tecas, a gata cinzenta de Tatiana ronronava enquanto Maria a acariciava na barriga.
Uma batida forte fez-se soar na porta do quarto.
- Sim. – O pai de Tatiana, o senhor Paulo entrou no quarto.
- Tens que te vestir. Vamos até à cidade.
- Porquê? – Tatiana perguntou distraidamente, enquanto os seus dedos voavam pelo teclado, discando uma longa despedida no Messenger.
- O Manuel teve um acidente enquanto ia a guiar. Ia com a mulher e os filhos.
- Eles estão bem? – Maria pulou da cama, assustando a gata.
- Parece que foi muito grave. Foram de urgência para o hospital. – Tatiana já se tinha levantado e tirado a mala do cabide. Colocou lá dentro o telemóvel, a carteira e enfiou o nariz no guarda-fato. – Os miúdos estão bem. Mas o Manuel está em estado muito crítico e a Teresa também não está no seu melhor estado.
- Então temos que nos despachar. – Tatiana empurrou o pai para fora do quarto. – Deixa-me mudar de roupa. – O senhor Paulo, girou rapidamente e foi-se embora. – Eu não acredito nisto. O tio Manuel é tão cuidadoso a guiar. – Tatiana dizia, enfiando uma blusa castanha de alças. – A tia Teresa deve estar em choque. Ela traumatiza-se tão facilmente.
- Pelo menos os gémeos estão bem. – Os primos de Tatiana levavam o tempo na casa dela, por isso Maria estava bem familiarizada com os dois. E não podia deixar de estar preocupada com o que poderia ter-lhes acontecido.
Maria foi para casa com a promessa de Tatiana que ia dando notícias do sucedido. A avó Medina ficou muito preocupada com o acidente. Ela conhece o senhor Manuel desde que ele era uma criança.
- Deus queira que melhor rapidamente. – Ela disse com a sua voz rouca. – Aquele rapaz é o pilar daquela família. Imagina se fica incapaz de trabalhar? Como é que a Teresa vai sustentar os filhos?
- Ela arranja um emprego avó. – Maria disse, enquanto colocava a mesa para o almoço.
- Hoje em dia já não é como era dantes. Os empregos estão cada vez mais difíceis de se arranjarem. – A velhinha desligou o fogão e colocou duas conchas de sopa em cada um dos pratos. – Ela não vai ter mão naqueles pestinhas quando crescerem. Ela é demasiado branda com eles. – Maria riu. – É verdade. Tu sabes que aqueles dois diabretes estão sempre a armar das boas. Eles precisavam eram de um belo par de açoites. – Maria não pode evitar de dar uma gargalhada. A avó Medina era sempre exagerada no que toca à educação. Ela sabia-o bem, porque em pequena ainda levou alguma tareia da avó. Ou por não fazer caso dela, ou por se escapar às escondidas com a Tatiana e o Daniel, quando em pequenos, sozinhos para a ribeira.

- Deixe lá avó. A Teresa sempre tem a família para ajudar.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Toque da noite: II


Despertou com o barulho do portão de madeira na rua. Deu uma volta na cama, mas foi inútil. Perdera o sono. Olhou para o relógio, marcava sete horas da manhã. Era cedo, e só dormira seis horas. Mas pelo menos dormiu uma noite descansada, sem qualquer tipo de pesadelo revelador.
Levantou-se enfiando as suas havaianas vermelhas, e espreitou pela janela. A sua avó já estava vestida e bem desperta. Dirigia-se em direcção ao galinheiro. Todas as manhãs se levantava cedo, mas no Verão dizia que era por ser mais fresco. Trabalhava-se melhor pelo fresquinho da manhã. Maria foi para a casa de banho, e passou água pela cara. Olhou-se no espelho e notou que as olheiras tinham aliviado significativamente.
O sol entrava radiantemente pela janela da cozinha. O pão do dia estava num cesto em cima da mesa. A sua avó tinha deixado a mesa posta para ela. Os seus pais não faziam isso. Uma onda de tristeza e saudade passou por ela.
Fazia quase um ano que os pais a mandaram de volta para a aldeia. Eles não aguentaram mais aquilo. Levaram-na a muitos psicólogos e outros médicos, mas nenhum tinha uma solução eficaz para o seu problema. E quando aconteceu com o avô dela, tudo mudou. A avó estava sozinha, velhinha, precisava de companhia e ajuda, mas recusava-se a ir para um lar e a abandonar a quinta. Ela quis que a neta fosse morar com ela. Os pais de Maria estavam para interna-la num centro psiquiátrico, porque diziam que não eram capazes de controlar a situação e que não podiam ficar em casa a tempo inteiro. Mas a avó Medina pediu-lhes que deixassem a neta ir viver com ela, que o problema de Maria era espiritual e os ares da cidade não ajudavam. Então enviaram-na um ano à experiência.
Maria não era uma incapaz, ela conseguia fazer as tarefas do dia-a-dia, simplesmente tinha momentos de crise, o que ela tem vindo a controlar melhor.
Na primeira semana que foi para casa da avó, ela sentiu-se muito melhor. As dores de cabeça desapareceram, os pesadelos eram mais leves e não revelavam nada. Mas no início da segunda semana, Maria voltou a ter um pesadelo revelador. Ela sonhou de novo com as vozes e as figuras escuras. Elas perseguiam um homem de meia-idade até sua casa, dono de uma mercearia na aldeia. As vozes diziam-lhe que ele tinha mentido à família, que tinha deixado morrer alguém. Maria acordou aos gritos ao visualizar o segredo do homem. Ela viu ele a discutir com a mulher dele, qualquer coisa sobre problemas económicos em casa. Era como se Maria estivesse ao lado do casal que discutia, o homem tinha um hálito forte a álcool e a mulher começou a ter um ataque asmático. Maria gritou para que o homem chamasse ajuda, mas o homem parecia não notar a sua presença, continuando a gritar com a mulher e a ofende-la. Dizendo-lhe coisas horríveis e que escusava de fingir que estava a morrer. Quando Maria correu para pegar no telefone, acordou. A avó Medina estava ao seu lado na cama, abraçou-a. Quando contou tudo o que tinha sonhado, a avó Medina confortou-a dizendo-lhe que os sonhos podem ser muito disparatados. Mas na verdade o homem da mercearia com quem Maria tinha sonhado era viúvo há um mês. E na noite seguinte, o homem desapareceu. Quem deu pela sua ausência foram os clientes dele. Uma senhora que ia todos os dias comprar leite, foi a sua casa. Mas quando lá chegou a porta da entrada estava aberta. Entrou e não encontrou ninguém. Apenas uma mesa posta com um jantar para uma pessoa, intacto. Estranhou e foi ao andar de cima da casa, mas não o encontrou lá. Foi até ao quintal, e estava vazio. Chamou a guarda. Quando lá chegaram, revistaram a casa e o quintal a pente fino, mas não encontraram lá nada que pudesse dar pistas do desaparecimento do homem. Contactaram familiares, amigos, clientes, pessoas com quem negociava e ninguém soube dar uma justificação para o desaparecimento do homem. A avó Medina não disse nada a ninguém, nem mesmo a Maria. Mas soube que o que a neta sonhava era muito mais do que um problema médico ou de alma. Umas semanas depois, um vizinho encontrou o casaco do homem da mercearia no topo de um dos pinheiros mais altos. A guarda concluiu que podia ter sido algum casaco que ele tinha pendurado na rua para enxugar e que com os ventos fortes de Inverno fora lá parar. A família do homem desaparecido parecia chocada com o desaparecimento dele, ele dava-se muito bem com a família e até já estava a recuperar economicamente.
As crises de Maria, aquelas que ela tem de noite aos gritos passaram e com o tempo desapareceram, mas os pesadelos de vez em quando voltam. A senhora Medina tem frequentado curandeiros e bruxas da zona, à procura de uma cura ou resposta para o problema da neta. Mas ou lhe dizem que a neta está possuída, que tem um familiar com uma grande divida de orações que já morreu e que a divida precisa ser paga, que tem um dom psíquico ou simplesmente dizem que não é o tipo de problema que elas possam curar. Maria já foi exorcitada, já pagou promessas de um qualquer familiar que morreu e até já tomou umas mesinhas que não tiveram qualquer tipo de efeito. Tudo para que fizesse a vontade à sua avó, porque na verdade ela não acreditava em nada dessas coisas.
- Porque é que a bruxa não quer ajudar? O que é que ela quer dizer que não é o tipo de problema que pode curar? Nem sequer nos diz qual é o problema. – Resmungou a avó Medina depois de ter ido falar com uma jovem médium que vive na cidade mais próxima. – Ela bem que pode esperar pela minha visita mais vezes que eu não vou desistir tão facilmente. – Continuava resmungando.
Contudo, Maria ia ás aulas. E matou saudades de amizades de infância com as quais se lembrava de brincar o dia inteiro lá na aldeia. Daniel foi um dos poucos que se manteve na aldeia, a maioria foi morar para a cidade ou para a vila. Agora era verão, e eles só iam à cidade ou á vila na altura das festas. Maria acabou o pequeno-almoço e foi ter com a avó. Ela tinha ido dar de comer às galinhas, e posto água fresca e limpa.
- Querida a irmã do senhor Medeiros… – O homem da mercearia desaparecido. - … Está a tomar conta da mercearia agora. Podes ir lá buscar coisas para a dispensa.
Maria foi mudar de roupa, ela ainda tem aquela coisa da cidade de ter que estar sempre bem vestida cada vez que sai de casa. Embora na aldeia ninguém repare nisso. Ela fechou o portão de madeira, pegou na bicicleta cromada e foi em direcção á aldeia pelo caminho de terra. O tempo seco não ajudava muito, porque ao afastar-se na bicicleta, uma nuvem de pó perseguia Maria. Na mercearia pode ouvir duas mulheres a conversarem, uma delas, a que estava detrás do balcão devia ser a irmã do senhor Medeiros.
- É realmente muito estranho. E aquilo de encontrarem o casaco do meu irmão no topo do pinheiro não me parece um bom sinal. – A mulher que falava tinha os olhos húmidos e vermelhos. – Ele jamais saia com a porta aberta. O jantar estava intacto, as loiças e os talheres em cima da mesa estavam limpos, como se ele se estivesse a preparar para comer. – Soluçou. – Alguma coisa se passou.
- Eu também acho. E a guarda não é capaz de descobrir nada. – A outra mulher tirou um lenço da mala e entregou-o à irmã do Sr. Medeiros. – Porque não experimentas falar com a curandeira?
- Oh meu Deus! Achas que eu devia?
- É uma situação de desespero. Não perdes nada em tentar. Já lá vai quase um ano desde o desaparecimento do teu irmão. Não me parece que a guarda vá fazer grande coisa ao fim de tanto tempo. – A outra mulher soluçou mais forte.
– O meu marido não acredita nessas coisas.
- Mas o que importa no que o teu marido acredita ou não? Tu tens que fazer o que puderes. Eu posso ir lá contigo se quiseres companhia.
Maria chegou ao balcão e pediu algumas coisas que precisava. Pagou a conta e foi até à loja do outro lado da rua. Enfiou-se no meio das prateleiras dos produtos de higiene, ela precisava de champô. Sentia um peso na consciência porque sabia que a irmã do senhor Medeiros não ia ver o seu irmão nunca mais, e porque sabia que podia ter feito alguma coisa antes do desaparecimento dele. Ela podia ter avisado o senhor Medeiros. Mas arriscava-se a que lhe acontecesse o mesmo que acontecera das outras vezes que tentara avisar as pessoas. Diziam que sonhos são isso mesmo, sonhos. Que não passam da imaginação humana a trabalhar. E depois de desaparecer a pessoa que avisara que ia desaparecer, a família ou amigos que tinham conhecimento do aviso, olhavam-na como se fosse responsável ou como se fosse algo maligno. Por isso ela desistira de fazer o mais acertado, e de se tornar uma anormal também ali, naquela pequena aldeia.
Maria voltou para casa da avó. Ainda assombrada com a conversa da mercearia. A avó estava no quintal, a regar a horta. Maria disse-lhe que ia dar uma volta e que estaria em casa à hora de almoço. A velhinha sorriu-lhe e continuou com a sua tarefa.
Desta vez deixou a bicicleta em casa e foi a pé. Estava demasiado irritada e precisava de libertar toda a energia negativa que tinha acumulado. O caminho estava deserto, não fosse ele dar unicamente à quinta da sua avó.
A avó Medina nunca culpara Maria pelo desaparecimento do seu marido. Não tinha sido na aldeia, foi quando eles estavam de visita a casa de Maria. Portanto na aldeia nunca se soube muito bem o que se passou. Na cidade deram-no como morto, ao fim de procuras exaustivas. Quando Maria sonhou com o avô, viu-o à briga com o irmão, quando novos. Eles caíram os dois num pequeno declive, mas o irmão do avô deu uma má queda e partiu o pescoço. Das complicações que se seguiram ele morreu. Ela nunca percebeu bem como funcionavam as suas revelações nos pesadelos, mas uma coisa era comum a todas. As figuras escuras no seu pesadelo perseguiam pessoas que tinham testemunhado mortes. Poderiam ser elas que apanhavam as pessoas? Era uma questão que perseguia Maria desde o início. E a resposta a esta era algo que ela tinha medo de saber.Antes de chegar à aldeia, ela foi pela estrada principal até uma ribeira que passava ali perto. Limpou as lágrimas com a mão, e sentou-se numa rocha que estava na margem. Ficou a observar as carpas que nadavam pela ribeira, e ia atirando pequenas pedras para o mais longe que conseguia. O dia ia ser quente. Não havia qualquer sinal de vento. Ouviam-se grilos e cigarras. Do outro lado da ribeira, num terreno cheio de pasto seco e alto, um rebanho de ovelhas estava disperso, e um cão de guarda, desses grandes que são maiores que as ovelhas, estava deitado á sombra de uma oliveira. A alguns metros era visível uma ponte de pedra antiga. Uma prova viva da presença dos romanos há muitos anos atrás, ainda em condições para que os carros passassem por lá. Maria admirou a construção, e ficou a encará-la por alguns minutos. Na cidade onde ela vivia não havia coisas destas. Não havia uma ribeira, um pasto com ovelhas, cães á sombra de oliveiras, uma ponte antiga ou caminhos de terra. Ela respirou fundo e levantou-se. Cuidadosamente desceu a pedra, e foi até à aldeia. Ela precisava de conversas de raparigas.

domingo, 6 de setembro de 2009

Toque da Noite: I

A doce melodia nocturna rodeava todos os seus sentidos. Pequenos animais escondidos por entre as ervas comunicavam, o vento acariciava de mansinho as folhas de um salgueiro e o céu encontrava-se limpo, revelando uma lua crescente misteriosa. Ele ergueu a cabeça e encarou por algum tempo os pontos luminosos de tamanhos indefinidos que enriqueciam o céu. Eles transmitiam-lhe uma onda de serenidade e relaxamento. Inspirou profundamente e sentiu o selvagem odor do campo, o perfume das ervas daninhas misturava-se com o cheiro das ervas aromáticas plantadas numa horta próxima. Quando expirou, baixou a cabeça e continuou o seu caminho. Era certo que ia fazer uma visita fora de horas, mas tinha que resolver as coisas.
Abriu o pequeno portão de madeira silenciosamente. Andou para a entrada e bateu levemente na porta de metal. A noite estava calma. Desde que o cão de guarda tinha sido atropelado por um jipe da GNR, que a senhora Medina não tinha arranjado outro. Ele voltou a bater com mais força. Ouviu um ruído dentro de casa, e a luz da entrada acendeu-se. Ele esperou que os seus olhos se ajustassem à intensidade da luz, pestanejando.
- Quem é? – Uma voz rouca e profunda soou.
- Senhora Medina, sou eu, o Daniel. – Ele ouviu um arrastar de pés, a porta abriu-se e uma mulher muito gorda e baixa estava perante ele, enfiada numa camisa de dormir rosa clara, que mais parecia um saco de batatas. Com uma espingarda numa mão, encostada lateralmente.
- Mas o que é que se passou? – Perguntou com um tom de alarme na voz.
- Não é nada grave. – Garantiu-lhe o rapaz. – Eu precisava de falar com a Maria.
- Achas que isto é horas de falares com quem quer que seja? – Resmungou a mulher gorda, enquanto voltava as costas e arrastava os pés pelo chão.
- Sei que não. E desculpe incomodá-la a estas horas. Mas era um assunto que eu tenho que falar com a Maria. – A mulher carrancuda olhou para ele. – Um assunto que não podia esperar por amanhã.
- E que assunto é esse rapaz? – Perguntou mal-humorada.
- Deixe estar avó. – Uma rapariga ensonada desceu as escadas. – Eu trato disto. – Ela tinha os seus olhos muito verdes semi-cerrados. A mulher encarou-a, e as suas feições carrancudas aliviaram-se.
- Tens a certeza?
- Tenho sim. Vá se deitar, que eu vou tratar disto rápido e também já me vou deitar. – A rapariga pôs os seus braços em volta da senhora de idade, e encaminhou-a para as escadas. A mulher deu-lhe a espingarda, e subiu preguiçosamente.
- Eu não te queria acordar. – Ele começou. – Mas eu tinha que falar contigo.
A rapariga colocou a espingarda dentro de um armário por debaixo das escadas, e dirigiu-se para a sala de estar, que era mesmo junto à entrada. Em silêncio sentou-se no sofá. Ele sentou-se junto a ela, e olhou para o cimo das escadas. A senhora Medina estava a observá-los do topo das escadas. A rapariga girou a cabeça nessa direcção.
- Precisa de mais alguma coisa avó?
- Era só para me despedir. Até amanhã! – Disse num repente e desapareceu no andar de cima.
- Até amanhã avó. – A rapariga respondeu. Voltou a cabeça para o rapaz e encarou-o. Os seus olhos já estavam mais abertos, o rosto sério e um pouco rosado. – O que me queres dizer?
- Eu peço-te desculpa pela maneira como hoje me comportei contigo. – Ele encarou-a com um olhar triste. – Eu sei que foi uma estupidez reagir daquela maneira.
- Sempre foste muito céptico em relação a este tipo de coisas. – Ela olhou para baixou, e pegou numa das almofadas do sofá. – Para ser sincera, eu nem sei onde tinha a cabeça ao pensar que ias reagir de outra maneira. - Fez-se um silêncio. Daniel continuava a olhar para ela. Ele mal podia acreditar que se sentia tão bem perto de Maria, apesar de tudo aquilo que ele sabia sobre ela. Ela era uma rapariga muito bonita, à sua maneira. O cabelo castanho claro, muito encaracolado que lhe caía pelos ombros, moldava uma cara oval, de feições muito suaves e meigas, embora tristes.
- Mas eu pensei sobre o assunto. – Ele chegou-se um pouco para mais perto dela. – Eu não acho que isso seja assim tão mau. – Ele pegou no rosto baixo dela, pelo queixo e levantou-o suavemente. – Só temos que ter mais cuidado. – Os olhos de Maria humedeceram, e ela abraçou Daniel. O rapaz sentiu a humidade no seu pescoço, e entregou-lhe um lenço de papel para ela limpar os olhos.
- Isso quer dizer que não te importas com aquilo que eu sou?
- Importo. Faz parte de ti, e eu vou ter que me importar sempre, caso queira ou não. – Quando Maria o libertou do seu abraço, ele olhou-a seriamente. – A única coisa que de momento posso fazer por ti é apoiar-te. – Mesmo assim, ela sorriu.
- És um bom amigo. – O relógio da sala tocou. Marcava uma hora da manhã.
- Tenho que ir. – Ele levantou-se, e Maria imitou-o. – A tua avó não achou piada nenhuma à minha visita a esta hora.
- Amanhã nem se vai lembrar. – Maria disse-lhe. – Vai pensar que sonhou tudo. – Riram-se os dois. Maria abriu-lhe a porta. Daniel olhou-a mais uma vez.
- Então até logo. – Ela sorriu.
- Até logo Daniel. E obrigada. – Ele afastou-se em direcção ao pequeno portão de madeira. Maria ficou a vê-lo a afastar-se. Sentindo uma onda de gratidão em relação àquele rapaz magro, de cara comprida e nariz recto, que sempre a apoiara desde pequena. Ela sorriu para si mesma, feliz pela sorte que lhe tinha batido nessa noite à porta e foi-se deitar.

Apresentação

Sou uma aspirante a escritora. Desde pequena que a minha criatividade fervilha. E esta semana enquanto fazia uma pesquisa na net, tomei uma decisão. Criar um blog em que pudesse escrever algumas das minhas histórias. Por isso, se fores uma pessoa que gosta de dilemas pessoais com um toque de paranormal, esta é uma história que deves ler. Por enquanto, vou lançar alguns capitulos de uma só história. Espero que gostem. E não se esqueçam, vão comentando. :)