quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Toque da noite: II


Despertou com o barulho do portão de madeira na rua. Deu uma volta na cama, mas foi inútil. Perdera o sono. Olhou para o relógio, marcava sete horas da manhã. Era cedo, e só dormira seis horas. Mas pelo menos dormiu uma noite descansada, sem qualquer tipo de pesadelo revelador.
Levantou-se enfiando as suas havaianas vermelhas, e espreitou pela janela. A sua avó já estava vestida e bem desperta. Dirigia-se em direcção ao galinheiro. Todas as manhãs se levantava cedo, mas no Verão dizia que era por ser mais fresco. Trabalhava-se melhor pelo fresquinho da manhã. Maria foi para a casa de banho, e passou água pela cara. Olhou-se no espelho e notou que as olheiras tinham aliviado significativamente.
O sol entrava radiantemente pela janela da cozinha. O pão do dia estava num cesto em cima da mesa. A sua avó tinha deixado a mesa posta para ela. Os seus pais não faziam isso. Uma onda de tristeza e saudade passou por ela.
Fazia quase um ano que os pais a mandaram de volta para a aldeia. Eles não aguentaram mais aquilo. Levaram-na a muitos psicólogos e outros médicos, mas nenhum tinha uma solução eficaz para o seu problema. E quando aconteceu com o avô dela, tudo mudou. A avó estava sozinha, velhinha, precisava de companhia e ajuda, mas recusava-se a ir para um lar e a abandonar a quinta. Ela quis que a neta fosse morar com ela. Os pais de Maria estavam para interna-la num centro psiquiátrico, porque diziam que não eram capazes de controlar a situação e que não podiam ficar em casa a tempo inteiro. Mas a avó Medina pediu-lhes que deixassem a neta ir viver com ela, que o problema de Maria era espiritual e os ares da cidade não ajudavam. Então enviaram-na um ano à experiência.
Maria não era uma incapaz, ela conseguia fazer as tarefas do dia-a-dia, simplesmente tinha momentos de crise, o que ela tem vindo a controlar melhor.
Na primeira semana que foi para casa da avó, ela sentiu-se muito melhor. As dores de cabeça desapareceram, os pesadelos eram mais leves e não revelavam nada. Mas no início da segunda semana, Maria voltou a ter um pesadelo revelador. Ela sonhou de novo com as vozes e as figuras escuras. Elas perseguiam um homem de meia-idade até sua casa, dono de uma mercearia na aldeia. As vozes diziam-lhe que ele tinha mentido à família, que tinha deixado morrer alguém. Maria acordou aos gritos ao visualizar o segredo do homem. Ela viu ele a discutir com a mulher dele, qualquer coisa sobre problemas económicos em casa. Era como se Maria estivesse ao lado do casal que discutia, o homem tinha um hálito forte a álcool e a mulher começou a ter um ataque asmático. Maria gritou para que o homem chamasse ajuda, mas o homem parecia não notar a sua presença, continuando a gritar com a mulher e a ofende-la. Dizendo-lhe coisas horríveis e que escusava de fingir que estava a morrer. Quando Maria correu para pegar no telefone, acordou. A avó Medina estava ao seu lado na cama, abraçou-a. Quando contou tudo o que tinha sonhado, a avó Medina confortou-a dizendo-lhe que os sonhos podem ser muito disparatados. Mas na verdade o homem da mercearia com quem Maria tinha sonhado era viúvo há um mês. E na noite seguinte, o homem desapareceu. Quem deu pela sua ausência foram os clientes dele. Uma senhora que ia todos os dias comprar leite, foi a sua casa. Mas quando lá chegou a porta da entrada estava aberta. Entrou e não encontrou ninguém. Apenas uma mesa posta com um jantar para uma pessoa, intacto. Estranhou e foi ao andar de cima da casa, mas não o encontrou lá. Foi até ao quintal, e estava vazio. Chamou a guarda. Quando lá chegaram, revistaram a casa e o quintal a pente fino, mas não encontraram lá nada que pudesse dar pistas do desaparecimento do homem. Contactaram familiares, amigos, clientes, pessoas com quem negociava e ninguém soube dar uma justificação para o desaparecimento do homem. A avó Medina não disse nada a ninguém, nem mesmo a Maria. Mas soube que o que a neta sonhava era muito mais do que um problema médico ou de alma. Umas semanas depois, um vizinho encontrou o casaco do homem da mercearia no topo de um dos pinheiros mais altos. A guarda concluiu que podia ter sido algum casaco que ele tinha pendurado na rua para enxugar e que com os ventos fortes de Inverno fora lá parar. A família do homem desaparecido parecia chocada com o desaparecimento dele, ele dava-se muito bem com a família e até já estava a recuperar economicamente.
As crises de Maria, aquelas que ela tem de noite aos gritos passaram e com o tempo desapareceram, mas os pesadelos de vez em quando voltam. A senhora Medina tem frequentado curandeiros e bruxas da zona, à procura de uma cura ou resposta para o problema da neta. Mas ou lhe dizem que a neta está possuída, que tem um familiar com uma grande divida de orações que já morreu e que a divida precisa ser paga, que tem um dom psíquico ou simplesmente dizem que não é o tipo de problema que elas possam curar. Maria já foi exorcitada, já pagou promessas de um qualquer familiar que morreu e até já tomou umas mesinhas que não tiveram qualquer tipo de efeito. Tudo para que fizesse a vontade à sua avó, porque na verdade ela não acreditava em nada dessas coisas.
- Porque é que a bruxa não quer ajudar? O que é que ela quer dizer que não é o tipo de problema que pode curar? Nem sequer nos diz qual é o problema. – Resmungou a avó Medina depois de ter ido falar com uma jovem médium que vive na cidade mais próxima. – Ela bem que pode esperar pela minha visita mais vezes que eu não vou desistir tão facilmente. – Continuava resmungando.
Contudo, Maria ia ás aulas. E matou saudades de amizades de infância com as quais se lembrava de brincar o dia inteiro lá na aldeia. Daniel foi um dos poucos que se manteve na aldeia, a maioria foi morar para a cidade ou para a vila. Agora era verão, e eles só iam à cidade ou á vila na altura das festas. Maria acabou o pequeno-almoço e foi ter com a avó. Ela tinha ido dar de comer às galinhas, e posto água fresca e limpa.
- Querida a irmã do senhor Medeiros… – O homem da mercearia desaparecido. - … Está a tomar conta da mercearia agora. Podes ir lá buscar coisas para a dispensa.
Maria foi mudar de roupa, ela ainda tem aquela coisa da cidade de ter que estar sempre bem vestida cada vez que sai de casa. Embora na aldeia ninguém repare nisso. Ela fechou o portão de madeira, pegou na bicicleta cromada e foi em direcção á aldeia pelo caminho de terra. O tempo seco não ajudava muito, porque ao afastar-se na bicicleta, uma nuvem de pó perseguia Maria. Na mercearia pode ouvir duas mulheres a conversarem, uma delas, a que estava detrás do balcão devia ser a irmã do senhor Medeiros.
- É realmente muito estranho. E aquilo de encontrarem o casaco do meu irmão no topo do pinheiro não me parece um bom sinal. – A mulher que falava tinha os olhos húmidos e vermelhos. – Ele jamais saia com a porta aberta. O jantar estava intacto, as loiças e os talheres em cima da mesa estavam limpos, como se ele se estivesse a preparar para comer. – Soluçou. – Alguma coisa se passou.
- Eu também acho. E a guarda não é capaz de descobrir nada. – A outra mulher tirou um lenço da mala e entregou-o à irmã do Sr. Medeiros. – Porque não experimentas falar com a curandeira?
- Oh meu Deus! Achas que eu devia?
- É uma situação de desespero. Não perdes nada em tentar. Já lá vai quase um ano desde o desaparecimento do teu irmão. Não me parece que a guarda vá fazer grande coisa ao fim de tanto tempo. – A outra mulher soluçou mais forte.
– O meu marido não acredita nessas coisas.
- Mas o que importa no que o teu marido acredita ou não? Tu tens que fazer o que puderes. Eu posso ir lá contigo se quiseres companhia.
Maria chegou ao balcão e pediu algumas coisas que precisava. Pagou a conta e foi até à loja do outro lado da rua. Enfiou-se no meio das prateleiras dos produtos de higiene, ela precisava de champô. Sentia um peso na consciência porque sabia que a irmã do senhor Medeiros não ia ver o seu irmão nunca mais, e porque sabia que podia ter feito alguma coisa antes do desaparecimento dele. Ela podia ter avisado o senhor Medeiros. Mas arriscava-se a que lhe acontecesse o mesmo que acontecera das outras vezes que tentara avisar as pessoas. Diziam que sonhos são isso mesmo, sonhos. Que não passam da imaginação humana a trabalhar. E depois de desaparecer a pessoa que avisara que ia desaparecer, a família ou amigos que tinham conhecimento do aviso, olhavam-na como se fosse responsável ou como se fosse algo maligno. Por isso ela desistira de fazer o mais acertado, e de se tornar uma anormal também ali, naquela pequena aldeia.
Maria voltou para casa da avó. Ainda assombrada com a conversa da mercearia. A avó estava no quintal, a regar a horta. Maria disse-lhe que ia dar uma volta e que estaria em casa à hora de almoço. A velhinha sorriu-lhe e continuou com a sua tarefa.
Desta vez deixou a bicicleta em casa e foi a pé. Estava demasiado irritada e precisava de libertar toda a energia negativa que tinha acumulado. O caminho estava deserto, não fosse ele dar unicamente à quinta da sua avó.
A avó Medina nunca culpara Maria pelo desaparecimento do seu marido. Não tinha sido na aldeia, foi quando eles estavam de visita a casa de Maria. Portanto na aldeia nunca se soube muito bem o que se passou. Na cidade deram-no como morto, ao fim de procuras exaustivas. Quando Maria sonhou com o avô, viu-o à briga com o irmão, quando novos. Eles caíram os dois num pequeno declive, mas o irmão do avô deu uma má queda e partiu o pescoço. Das complicações que se seguiram ele morreu. Ela nunca percebeu bem como funcionavam as suas revelações nos pesadelos, mas uma coisa era comum a todas. As figuras escuras no seu pesadelo perseguiam pessoas que tinham testemunhado mortes. Poderiam ser elas que apanhavam as pessoas? Era uma questão que perseguia Maria desde o início. E a resposta a esta era algo que ela tinha medo de saber.Antes de chegar à aldeia, ela foi pela estrada principal até uma ribeira que passava ali perto. Limpou as lágrimas com a mão, e sentou-se numa rocha que estava na margem. Ficou a observar as carpas que nadavam pela ribeira, e ia atirando pequenas pedras para o mais longe que conseguia. O dia ia ser quente. Não havia qualquer sinal de vento. Ouviam-se grilos e cigarras. Do outro lado da ribeira, num terreno cheio de pasto seco e alto, um rebanho de ovelhas estava disperso, e um cão de guarda, desses grandes que são maiores que as ovelhas, estava deitado á sombra de uma oliveira. A alguns metros era visível uma ponte de pedra antiga. Uma prova viva da presença dos romanos há muitos anos atrás, ainda em condições para que os carros passassem por lá. Maria admirou a construção, e ficou a encará-la por alguns minutos. Na cidade onde ela vivia não havia coisas destas. Não havia uma ribeira, um pasto com ovelhas, cães á sombra de oliveiras, uma ponte antiga ou caminhos de terra. Ela respirou fundo e levantou-se. Cuidadosamente desceu a pedra, e foi até à aldeia. Ela precisava de conversas de raparigas.

2 comentários:

  1. Eu gxt da tua história, gostava de saber a continuação. Vou estar atenta.

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  2. Muito bom conto até esta altura dos acontecimentos. Brilhantemente escrito; uma condução que nos faz querer saber tudo, e cada vez mais, até o final que imaginamos soberbo desde já. Eis uma verdadeira história fantástica. Parabéns aqui da Amazônia Brasileira! Abraços!

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