quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Toque da noite: XIV

À tarde, Maria despediu-se dos pais. Eles estavam só à espera que ela chegasse para partirem mais descansados.
A avó Medina estava mal disposta, passou grande parte do tempo a queixar-se de que Leonor não era uma boa esposa para o filho.
- Já viste como o teu pai está? Parece doente e aquela gordura toda não é nada bom sinal. – Dizia enquanto lavava a loiça.
- Não exagere avó. – Maria enxaguava e colocava-a no escorredor da loiça.
- Uhm? – Pausou a sua tarefa, encarando Maria. - Mas qual exagero? Se ele vivesse comigo ia ficar à dieta de hortaliças, migas e carne de porco. Ias a ver enquanto não recuperava a forma. – A avó Medina acreditava piamente que uma dieta saudável devia ser baseada em hortaliças e carne de porco. Os enchidos foram-lhe proibidos pelo médico, mas ela argumenta que os médicos só têm os saberes da cidade, que os saberes do campo ficaram reservados para as pessoas do campo. E ainda hoje, Tatiana vai a dar com ela a lanchar pão com toucinho ou farinheira.
- Avó os toucinhos e as farinheiras não são consideradas alimentos saudáveis. São até bastante parecidos com as comidas de plástico que o pai anda a comer. – Maria foi pegar no pano da loiça para começar a limpar alguns talheres.
- Não digas tolices rapariga! – A avó Medina pôs a mão na anca. – Tu não te deixes influenciar por tudo o que os outros te dizem! Senão estás desgraçadinha da vida. – Maria não lhe respondeu. – Ouve o que te digo que não vou durar sempre.
- Eu sei avó. Mas também não podemos ser tão bicudas e não ouvir o que os outros nos têm para dizer. – A avó Medina retomou a sua tarefa.
- Mas olha, há muitas curas que não se fazem só pelo que os médicos dizem. Mas também pela força e fé da própria pessoa. – A avó olhou para ela. – Como seria se um médico te dissesse que não podias comer chocolate?
- É, talvez eu deixasse de comer. – A avó Medina riu.
- Não acredito nisso. Só vendo.
A noite caiu. Maria jantou com a avó e levantou a mesa no final. A avó Medina não se importou que ela fosse para casa de Tatiana, ajudar a tomar conta dos gémeos.
- Ai, vocês. Não vos percebo. Porque é que preferem ficar acordados à noite para ver porcarias, quando as podem ver de dia? – Comentou a avó.
- Compramos hoje muitos filmes. Eles estão entusiasmados e à noite têm dificuldade em dormir. Assim vai ser um estímulo para que se cansem e durmam melhor depois da sessão de filmes.
- Se vocês acham. – A avó bocejou. – A tua mãe cansa-me mesmo. Ela não consegue parar de falar, deve ter um problema qualquer na língua. – Maria riu. – Vou-me deitar. Vê se trancas a porta quando saíres.
- Ok avó. Até amanhã! – A avó deu-lhe um beijo de boas noites.
- Aquele garoto, o Daniel vem-te buscar?
- Sim.
- Eu não gosto que andes por ai sozinha à noite.
- Esteja descansada avó.
Maria pode ouvir a avó a arrastar-se pelas escadas até ao andar de cima. Daniel disse que passava por lá às dez e meia, por isso devia estar a chegar.
Maria sentou-se no sofá, enquanto esperava. Ela sabia que o amigo devia ter enfrentado grandes dilemas internos, só não sabia que ainda os estava a ter. Porém hoje ficou com a certeza disso. A médium deu a entender e a atitude de resposta que o Daniel teve só o recriminaram mais.
- Como me vais poder ajudar numa coisa que nem tu próprio acreditas? – Sussurrou levemente enquanto pensava. Foi surpreendida por uma batida na porta. Pegou no casaco e foi abrir.
- Boa noite! – Cumprimentou-a Daniel.
- Olá. – Maria fechou a porta e guardou as chaves no bolso. – Preparado?
- Sim. – Respondeu Daniel, sem grande entusiasmo.
Caminharam em silêncio por um bocado. Um silêncio incómodo. Maria não sabia se devia tocar no assunto da médium ou no facto de ele estar numa de evitar olhar ou falar com ela. Por outro lado, Daniel não queria falar do que se iria passar porque não estava muito crente de que se ia passar realmente alguma coisa.
- O céu hoje não está tão claro como costuma estar. – Comentou Maria, numa voz calma. Daniel olhou para o céu, fazendo com que o gorro do casaco que tinha sob a cabeça descaísse um pouco.
- É. – Não olhou para Maria.
- Mas o que é que se passa contigo? – Maria colocou-se na frente dele, impedindo-o de continuar a andar. Era certo que foi meio inesperado o repente com que Maria perguntou aquilo. Daniel foi obrigado a olhar para ela, um bocado surpreendido.
- O que se passa como? – Perguntou indiferente, olhando em redor e para o chão.
- Tens estado a tarde toda a evitar falar comigo. Não és capaz de me olhar nos olhos. E agora estás nervoso por causa de eu te estar a fazer frente. – Maria estava a desesperar. A tensão de ir enfrentar algo desconhecido, juntava-se com a tensão de que o amigo pudesse estar zangado com ela por algum motivo que ela não sabia. Daniel ficou em silêncio.
- Não me queres dizer? – Maria perguntou, agarrando-lhe os braços. Num esforço para que ele olhasse para ela.
- Maria…eu não quero falar disto agora. Hoje temos muita coisa em que pensar e…não é o melhor momento. – Daniel tentou olhar para ela, mas tinha que desviar o olhar por alguns segundos. Era demasiado. Ter que olhar-lhe nos olhos sem lhe poder dizer o que realmente sentia por ela. E hoje estava incomodado, não porque ia passar a noite em casa de Tatiana a ver desenhos animados, mas porque uma estranha lhe tinha dito um segredo que ele nunca contara a ninguém. Um segredo que apenas a mãe dele desconfiava.
- Mas é melhor dizeres-me. – Daniel passou ao lado dela e continuou a caminhar. Maria seguiu-o. - Eu não aguento o teu silêncio. – Os olhos de Maria humedeceram-se perante a atitude gélida dele.
- Vá lá! Não é nada de mais. – Daniel não se apercebeu de que Maria estava a chorar.
- Foi alguma coisa que eu fiz? – A voz de Maria estava a começar a falhar. Daniel voltou-se para ela, abanando a cabeça.
- Tu não fizeste nada. – Em parte. Pensou Daniel. Parando na frente dela. Boa. Já a puseste a chora! Pensou, revoltado. – Maria… - Ele aproximou-se dela, tentando olhar aqueles olhos castanhos e tristes. Que eram como um feitiço lançado sobre ele. Impedindo-o de a ignorar, de se render aos seus encantos. Acabou por abraça-la. Sentiu os perfeitos e perfumados caracóis dela baterem-lhe suavemente no rosto.
- Diz-me porque estás zangado comigo. – Pediu-lhe, numa voz mais controlada.
- Eu não estou zangado contigo. – Daniel afastou-se para poder olhá-la. – Estou zangado comigo. – Ela era tão bonita.
- E porque é que não eras capaz de me olhar quando falava contigo?
- Porque és o motivo pelo qual eu estou zangado comigo.
- Não percebo.
- Maria, tu és uma das pessoas mais importantes da minha vida. Tenho-te como uma pessoa sincera e verdadeiramente bondosa. E acredito na tua história, nas tuas visões… Mas mesmo assim, tenho as minhas dúvidas, o meu cepticismo… Eu acabo por me ver dividido entre dois lados. E como teu amigo eu não devia estar dividido. Tu devias ser a minha primeira escolha, sem qualquer dúvida. – Maria limpou os olhos com o dorso da mão, agora com um sorriso luminoso. Que só dava vontade a Daniel de a abraçar, de a fazer sorrir mais vezes. – Sinto-me mal ao olhar para ti porque é como se já não tivesse esse direito.
- Tu consegues surpreender-me sempre. – Disse Maria com um grande sorriso. – Pregas-me sustos deste e depois… acabas por me dizer coisas bonitas e exageradas. – Maria agarrou o braço de Daniel e puxou-o para que continuassem o caminho. – Estás ao meu lado. Lutando contra todas essas oposições que nascem dentro de ti. Tens mais do que o direito de olhar para mim. Tu tens o direito de me contar essas coisas. Somos amigos e é esse tipo de coisas que nos atormentam que devemos contar um ao outro. – Daniel olhou para ela, um meio sorriso surgiu-lhe no rosto. – Eu sobrecarrego-te com estas coisas que vão contra o teu cepticismo. Tu tens a obrigação de me contar as tuas coisas. Sobrecarrega-me! – Um sorriso torto acabou por se fazer notar na sua face. – E devias dar-me mais desses sorrisos tortos que eu tanto gosto. – Maria e Daniel pararam em frente da casa de Tatiana. – Especialmente em momentos como este. – Daniel desfez o sorriso, pensando na possibilidade que de facto algo ia acontecer nessa noite.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Toque da noite: XIII


O sol já percorria o seu caminho pelo céu. O autocarro não ia cheio. Tatiana e Maria iam, lado a lado, conversando acerca das suas expectativas em relação aquela visita que iam fazer na cidade. Daniel ia recostado no banco atrás delas, com os phones nos ouvidos e de olhos fechados. Mas não dormia, apenas tentava esquecer os últimos acontecimentos, numa tentativa de relaxamento.

Assim que chegaram à cidade foram directamente à procura da morada do médium. Acabaram por ir ter a uma zona da cidade pouco frequentada, em que as ruas parecem um pouco abandonadas.
- Não gosto nada do aspecto disto. – Queixou-se Tatiana.
- Eu vim sozinha com a minha avó…
- Qual é o problema? – Perguntou Daniel, quebrando o silêncio em que se manteve quase toda a viagem. – É uma zona mais antiga. Aqui nem há conhecimento de problemas nem nada. Por acaso é conhecida como uma das zonas mais calmas.
- É ali. – Maria apontou para um prédio de aparência antiga, em que as paredes pareciam ter sido pintadas recentemente. – No terceiro andar. – Tatiana e Daniel pararam um de cada lado de Maria. Observando atentamente o local.
- Ninguém diria. – Comentou sarcasticamente Daniel.
- Olha, se não quiseres entrar tudo bem. – Tatiana esforçou-se para parecer calma e paciente. – Eu sei que não acreditas nestas coisas. Nem sei como…
- Eu vou entrar. – Daniel aproveitou um morador que ia sair do prédio para segurar a porta e entrar. – Vêm?
O elevador estava avariado. Tiveram que subir o lance de escadas. Tatiana começava a ficar nervosa, as mãos dela começaram a tremer. Maria notou nisso quando ela se apoiou no corrimão. Pegou-lhe na mão e puxou-a. Tatiana sentiu-se encorajada e sorriu. Daniel não se apercebeu de nada. O corredor era muito mal iluminado. A única fonte de luz piscava, num curto-circuito que preenchia todo o corredor.

- Isto é um bocado assustador. – Tatiana apertou a mão de Maria.
- Conveniente. – Daniel tocou na campainha. Não obtiveram resposta. Ele inspirou impacientemente e voltou a tocar. Tatiana largou a mão de Maria e aproximou-se da porta. Ninguém respondia.
- Será que é cedo? – Tatiana aproximou o ouvido da porta.
- Provavelmente é tudo uma fantochada. – Resmungou Daniel em voz baixa. – Nem parece ser o local ideal para receber clientes. – Ele deu uma olhada em redor do corredor. – É que nem… – Ouviu-se o barulho de uma corrente a ser retirada da porta. Daniel calou-se e Tatiana saltou de susto, desencostando o ouvido. A porta abriu-se.
- Sim? – Uma mulher na casa dos trinta apareceu. Estava despenteada e com os olhos pintados de preto carregado. Vestia uma blusa decotada azul e umas calças de ganga rasgadas.
- Bom dia! – Tatiana falou. – É aqui que mora…- Ela retirou o pedaço de papel do bolso onde estava a morada. – Celeste Alfaia?
- Sim. É a própria. O que querem?
- Nós vínhamos procurar os seus serviços.
- Quem vos falou que eu faço serviços? – Ela encostou-se à ombreira da porta. Maria notou que a mulher estava descalça e que as unhas dos pés estavam pintadas de vermelho forte.
- Nós…
- Espera ai! – A mulher desencostou-se da porta e cruzou os braços. – Tu és aquela miúda do outro dia. A que veio com a avó. – Maria acenou que sim. – Eu já disse que não trato desse tipo de assuntos. E não me quero meter nisso. – A mulher ia fechar a porta, mas Daniel impediu-a, esticando o braço e colocando um pé na fisga da entrada.
- Nós não viemos pedir que envolvesse. Nós não viemos pedir para que tratasse do problema dela. – Daniel estava sério. – Nós queremos saber o que é que a Maria têm e o que é que se está a passar. – A mulher deixou de fazer força contra a porta. Daniel aliviou um pouco a força que exercia na porta para impedir que se fechasse.
- Eu não gosto de falar nisso. – Celeste disse.
- Nem nós. – Daniel falava de modo sério. – E acredito que você também não goste de falar de outras coisas. Das coisas que você diz tratar.
- Noto cepticismo em ti. – A mulher abriu a porta. Voltou a encostar-se na ombreira. – E não diria que estejas aqui por acreditares nas minhas capacidades como médium….De facto nem diria que estejas aqui por acreditares nisto. – Maria e Tatiana olharam para Daniel.
- Eu não quero perder o meu tempo…nem fazê-la perder o seu. Estamos aqui para encontrar respostas, não para falar de mim. – Daniel ficou a olhar, ainda de forma séria, para a mulher. – E não me está a parecer que tenha problemas em falar do assunto. Mas tem MEDO do assunto.
- Seria uma tola se não tivesse. – Ela lançou uma olhada para Tatiana e Maria. – Entrem. - O apartamento estava arrumado. Era pequeno e cheirava a tabaco. Um gato branco ronronava no sofá. Havia vários quadros de pinturas abstractas, castiçais e vasos com flores de plástico, exóticas.
- Sentem-se. – A mulher apontou para o sofá, enquanto ela se sentou na poltrona. – Querem alguma coisa para beber ou comer?
- Não, obrigado! – Tatiana apreçou-se a responder. Ela continuava a tremer, embora de forma menos intensa.

- Tens medo de mim? – A mulher soou desafiadora quando a questionou. Tatiana abanou a cabeça. – Parece-me que sim. – A mulher estava fixamente a olhar para os olhos de Tatiana. Tatiana congelou, os tremores desapareceram, mas Maria percebeu que até a sua respiração tinha parado. – Relaxa. Eu não faço mal a ninguém. Importam-se? – Disse apontando para o maço de tabaco. Maria e Daniel fizeram sinal que não. Tatiana estava ainda muito tensa, mas Maria já podia ouvir a sua respiração.
- Pode dizer-nos o que se passa? – Maria estava curiosa e um pouco ansiosa por saber.
- Posso. Mas não devia. – Ela deu uma passa. – Na verdade, foi aqui o rapaz céptico que me motivou a falar. – Ela debruçou-se um pouco para a frente. – Têm sido umas grandes lutas, não têm? – Ela sorriu, notando o olhar confuso de Daniel. – Céptico durante uma vida inteira. Mas tiveste que colocar de lado o cepticismo pela tua amiga. – Ela voltou a encostar-se no sofá. – Pelo menos, aparentemente. – Maria e Tatiana olharam para Daniel.
- Porque é que não devia falar disso? – Daniel estava desconfortável com a direcção da conversa e o carácter revelador desta. Tentou focar a conversa no motivo pelo que estavam ali.
- Eu não quero atrair as atenções. – Voltou a dar uma passa. – Nunca estamos sozinhos quando conversamos. – Deu um toque com o dedo no cigarro, para que a cinza caísse. – Há sempre alguém à espreita e que sabe tudo. – Voltou a dar outra passa. Os três olhavam-na. Tatiana tinha um olhar triste e assustado, Maria estava curiosa e impaciente. Daniel continuava com uma expressão séria e céptica. – Problemas com…um dos gémeos? Se não estou a interpretar mal o que percepciono. – Tatiana apertou os joelhos com as mãos. Daniel deixou escapar um olhar de surpresa e Maria ficou esperançosa.
- Sim. – Maria respondeu.
- Não vai ter muito tempo. – A mulher voltou a dar outra passa. – Vai ser esta noite. – Tatiana desmanchou-se em lágrimas. Maria apertou-lhe a mão.
- O que é aquilo que o vai apanhar?
- Não é um espírito comum. – A mulher pareceu pensativa. – Eu nem lhe chamaria um espírito. Os espíritos não conseguem criar forma do nada, precisam de uma base, um passado num corpo terreno. – Daniel bufou inconscientemente. A mulher olhou-o.
- Este é o tipo de coisa com que ninguém se quer meter. Pois pode-nos atingir fisicamente e espiritualmente. – Ela continuava com o olhar fixo em Daniel. – Não nos chega ser cépticos, nem acreditarmos que não pode fazer o que quer que tenha em mente.
- O que é essa coisa?
- Não sei o nome que lhe dão. – Ela falou baixo. – Sei que tem um grande poder. Não é algo que eu possa contactar. Provavelmente matava-me instantaneamente.
- É algum tipo de demónio?
- Não. – A mulher esmagou o cigarro no cinzeiro. – É o tipo de coisa com que um ser humano, principalmente aquele que ainda possui corpo terreno, não deve sequer pensar. É uma ordem natural e espiritual complicada. Esta espécie procura alimentar a sua energia a partir de testemunhos da morte. O medo e a tristeza que se apodera da alma perante a morte é o suficiente para atrair esta entidade.
- Não há nenhuma maneira de o impedir?
- Eu não sei. – A mulher agitou-se na poltrona. – Eu não devia mesmo falar disto. Sinto uma enorme negatividade em redor do tema. Vocês não sente o quão pesado está o ambiente aqui? – Na verdade todos sentiam. Maria e Tatiana acenaram que sim. Daniel acreditava que não passava de nervosismo devido aquela história em redor dos gémeos.
- Só vos digo mais uma coisa. – A mulher levantou-se do sofá. – Devem afastar-se daquilo. – Foi até à janela. – Mas eu sei que não o vão fazer. Portanto, o máximo que posso aconselhar é que usem rosmaninho e canela. É uma mistura poderosa para afastar coisas negativas. – A mulher voltou-se para eles. – Agora é melhor irem.
- Mas nós temos mais perguntas. Como é que essa coisa me avisa das suas vítimas em sonhos? – Maria estava de pé, aproximando-se a passos largos da mulher.
- Eu não sei. – Celeste olhou-a nos olhos. – Só te posso dizer que tens uma afinidade especial para com esta outra dimensão. Tens um dom superior ao dos médiuns habituais. Eu sinto-o em ti.
- Ãh?
- Sim. – A mulher aproximou-se da porta. – Por favor! Agora saiam. Eu já me arrisquei de mais. – Tatiana foi a primeira a sair, seguida de Maria. Quando Daniel ia a passar pela mulher e a sair ela impediu-o, segurando-o pelo antebraço.
- Se eu não tivesse as capacidades que tenho, como é que eu saberia que tu estás perdido de amores pela rapariga do cabelo encaracolado? – Sussurrou-lhe.
- Qualquer pessoa atenta o perceberia. – Respondeu-lhe.
- Mesmo que eu te diga que te apercebeste disso há quase um ano, quando ela voltou para a aldeia? – Daniel olhou-a surpreendido. – Não tenhas medo de assumir os teus sentimentos. – A mulher fechou a porta.
- Nem se despediu. – Comentou Maria, já a encaminhar-se para as escadas. Tatiana chorava agora mais sonoramente. – Tem calma. – Maria abraçou-a. Daniel seguiu-as.
Como só tinham autocarro de volta para casa às cinco da tarde, foram o resto da manhã para o jardim. Lá podiam falar à vontade sobre o assunto, sem que ninguém pudesse ouvir.
- O que vamos fazer? – Tatiana estava mais calma. Sentada de forma a abraçar os joelhos. Maria roía as unhas.
- Vamos ter que lhe fazer uma espera. – Maria deitou-se na relva, olhando para o céu. – Vamos ter que comprar muito rosmaninho e canela.
Daniel estava com as pernas esticadas apoiando-se nos braços.
- Isso só serve para afastar a negatividade. Não sei se terá efeito na “entidade”.
- Oh Daniel! O que é que a celeste te disse quando íamos a sair? – Tatiana lembrou-se.
- Contou-me uma coisa que era impossível ela saber. – Ele ficou a olhar para Maria. – Eu nunca na vida a tinha visto e ela soube daquilo como se alguém lhe tivesse contado.
- Não olhes para mim. – Maria sentou-se. – Eu não lhe disse nada sobre vocês.
- Eu não estou a dizer que lhe contas-te…
- Agora já acreditas que ela é mesmo um médium? - Tatiana desapertou os joelhos e cruzou as pernas.
- Ponho a possibilidade de que sim, mas não acredito totalmente nisso. – Ficaram em silêncio um bocado, enquanto viam um rapaz a lançar um peluche esquisito para que o seu cão o fosse buscar.
- Não chegaste a responder. O que é que ela te disse? – Perguntou Maria. Daniel não olhou para nenhuma delas, manteve o olhar no cão que corria desvairadamente com o boneco na boca, em direcção ao dono.
- Nada de especial…
- Eu vou dizer à minha mãe que hoje vamos ficar no quintal à noite para ver alguma chuva de estrelas ou assim. – Tatiana interrompeu, olhando para os amigos. – Isto é se vocês quiserem ficar de vigia comigo.
- Claro que sim. – Maria disse.
- Devíamos fazer vigia dentro de casa. É mais fácil de controlar. – Sugeriu Daniel.
- Posso convencer os gémeos a irem para o meu quarto. Eles adoram ficar acordados até tarde, podíamos fazer uma espécie de festa do pijama. A tia ia gostar da ideia, ajuda a estarem mais distraídos.
- Isso é muito de raparigas. – Daniel fez uma careta.
- Então fazemos uma maratona de desenhos animados para eles no meu quarto. – Tatiana pensou alto.
- E a tua tia vai deixar mesmo? Quero dizer, eles são crianças, achas mesmo que a tua tia concorda com uma noitada de bonecada? – Maria olhou para Daniel, um bocado incomodada com o facto de ele parecer um pouco distante dela.
- Sim, acho que sim. – Tatiana notou e encolheu os ombros a Maria. Daniel não notou nada.
- Os meus pais devem ir embora hoje. Pelo que não deve haver problema de eu ficar hoje na tua casa. A avó não costuma importar-se, embora eu não goste que ela fique sozinha com aquela idade…
- Mas se quiseres ficar com ela. Eu vou estar lá com a Tatiana. – Interrompeu Daniel sem estabelecer qualquer contacto visual.
- Sim génio. Tu que não tens qualquer tipo de ligação com esta criatura. – Disse sarcasticamente Tatiana.
- Não. Eu vou na mesma. É só uma noite.
- Ok. Então fica decidido. Eu passo por tua casa e depois vamos para lá. – Daniel disse a Maria, enquanto se levantava. - Onde vamos almoçar? – Perguntou com uma mão na barriga.
- Onde quiserem. – Disse Maria, preparando-se para levantar. Tatiana encolheu os ombros e levantou-se também.




segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Toque da noite: XII


Levantou-se cedo. As poucas horas de sono eram incapazes de superar a ansiedade que sentia em relação aquele dia. Ele sentia-se como se fosse mexer com o lado emocional de Tatiana em vão. Maria tinha necessidade de contar a Tatiana toda aquela história, mas ele não via necessidade disso. Até porque não acreditava que os sonhos de Maria eram de facto premonitórios. Ele lembrou-se do desespero que viu naqueles olhos verdes, na noite passada e sentiu-se incapaz de negar isso a Maria. Tatiana podia vir a sofrer com aquela ideia disparatada, mas acabaria por compreender que Maria precisava de ajuda, e eventualmente acabava por lhes perdoar.

A mãe dele tinha ido trabalhar, o que era bom. Ele tomou o pequeno-almoço e foi directo a casa de Maria. Quando lá chegou, ela estava na varanda do seu quarto. Correu para descer e escapuliu-se pela porta, dando um bom-dia ao amigo.
- Vamos ter com a Tatiana. – Disse ela apressando o passo em direcção ao caminho. Daniel notou nas grandes olheiras arroxeadas que se tinham formado por baixo dos olhos de Maria, mesmo estando disfarçadas com um pouco de maquilhagem.
- Tem calma. Ainda nem pensámos em como lhe vamos dizer. – Daniel quase que correu para chegar junto dela e poder acompanhar o passo.
- Eu tive muito tempo para pensar nisso hoje de madrugada.
- Tens cara disso. Quantas horas dormiste?
- Não sei. Poucas. – Maria caminhava desenfreadamente. Daniel tentou acompanhá-la.
- Sabes ao menos se ela já está acordada?
- Sei. Eu telefonei-lhe hoje de manhã, para contar que já tinha voltado á aldeia. E disse-lhe que tinha um assunto urgentíssimo para falar com ela. – Maria abrandou o passo quando saiu no portão. – Disse-lhe para ir ter connosco junto à ponte. E eu também te mandei uma sms, era escusado ires lá a casa indo-nos encontrar perto da tua casa.
- Eu ainda não liguei o telemóvel hoje. Não vi a sms. – Daniel meteu a mão no bolso e ligou o telemóvel. – Cá está. – Maria parecia ansiosa. Especialmente quando a sua vista alcançava a ponte e viu Tatiana sentada no muro. Maria olhou para Daniel.
- Ok. Vamos a isto.
- Vamos. – Forçou Daniel, como que um incentivo. Tatiana tirava bocadinhos de musgo seco do muro, atirando-os para a ribeira.
- Oh. Olá! – Tatiana pôs-se de pé. – Não sabia que tu também vinhas. – Disse a Daniel.
- Porque não haveria de vir? É um assunto urgentíssimo. – Ele deu-lhe de resposta.
- É. Mas tu já sabes o que é? – Tatiana perguntou, mas ele desviou-se da pergunta.
- Vamos sentar-nos naquela rocha. – Os três foram para lá. Tatiana foi a única que se sentou, Daniel ficou ao lado de Maria, de pé em frente de Tatiana.
- Ok. Contem lá o que se passa. – Tatiana tinha as pernas cruzadas e parecia um pouco aborrecida. – Já estou a ver que o Daniel soube antes de mim, desse assunto urgente.
- É um assunto sério. – Maria começou seriamente. – E por favor ouve-me até ao fim antes de dizeres o que quer que seja. – Tatiana descruzou as pernas, e inclinou-se ligeiramente para a frente.
- Estás-me a assustar. – Tatiana olhou de Maria para Daniel e de volta para a Maria. Maria respirou fundo. Daniel colocou-lhe uma mão no ombro. Então, encorajada pela presença do amigo, ela contou tudo sobre os seus sonhos, excepto do último, em que tinha sonhado com o desaparecimento de um dos gémeos.
Tatiana alternava entre o choque e pena que tinha de Maria. Ao ouvir parte do que Maria tinha contando sobre os sonhos, ela ficou calada, como a tentar absorver tudo o que lhe foi contado.
- Desaparecem misteriosamente? O vulto negro mostra-te porquê e como em sonhos?
- Uma pergunta de cada vez. – Daniel pediu. Tatiana olhava para Maria, com uma expressão preocupada.
- Oh Maria! – Ela levantou-se e abraçou a amiga. – Como é que aguentaste todo este tempo com esse segredo?
- Com paciência. – Maria disse, enquanto algumas lágrimas lhe caíam, juntando-se às de Tatiana.
- Eu se estivesse no teu lugar tinha dado em maluca. Só de pensar em vultos negros à noite fico com pele de galinha. – Tatiana apontou para o seu braço, com os pelos eriçados. – E o teu avô…. – Maria limpou as lágrimas com a mão. Tatiana também limpou as suas. – Como é que tu acreditas nisto? – Disse a Daniel. – Estás sempre cheio de cepticismos e de respostas científicas.
- É complicado demais para eu explicar agora. – Daniel respondeu, sem querer dar sinal de que não acreditava em frente de Maria.
- Mas ainda há mais. – Tatiana virou-se para Maria, Daniel sentou-se na rocha.
- Consegues ver outras coisas para além das pessoas que vão desaparecer? – Tatiana parecia animada com a ideia.
- Não. – Maria sentou-se ao lado de Daniel.
- Ela teve outro sonho recentemente. Com alguém que todos conhecemos. – Tatiana congelou ao ouvir as palavras de Daniel.
- Quem? – Foi a única coisa que conseguiu perguntar.
- O Alexandre, um dos gémeos. – Os suaves contornos da face de Tatiana enrugaram-se, numa expressão carregada e grosseira. Os olhos encheram-se de lágrimas e um misto de tristeza e horror passavam pela sua expressão. Daniel levantou-se para a segurar, não fosse ela fraquejar e cair no chão. Maria ficou à espera de ouvir um grito ou qualquer coisa do tipo. Mas não saiu nada. As lágrimas caiam em cascata nos olhos de Tatiana, mas não se ouvia um soluço nem um gemido. Maria temeu o pior e ajudou Daniel a sentar a amiga na rocha. Ela parecia paralisada de alguma maneira, os olhos distantes. Maria deu-lhe umas leves palmadas na cara.
- Tatiana…responde. – Maria deu-lhe palmadinhas e foi aumentando a força. Daniel foi até à ribeira e com a mão em concha pegou num pouco de água, que atirou para a cara de Tatiana. Ela estremeceu e olhou para Maria.
- Quando?
- Não sei dizer ao certo, mas vai ser esta semana de certeza. – Tatiana levantou-se da rocha.
- Ai meu Deus! O que vamos fazer? – Ela meteu as mãos na cabeça. As lágrimas continuavam a percorrer-lhe a face e desta vez eram bem audíveis os soluços.
- Tatiana tens que te acalmar. Nesse estado não vais conseguir pensar correctamente. Não vais poder ajudar o teu primo se te puseres assim cada vez que o vês ou pensas nele. – Daniel pegou nos ombros dela. Ela tentou libertar-se. – Acalma-te! Pelo bem da tua saúde e da sobrevivência do teu primo. – Ele agitou-a um pouco. Ela acalmou e ele abraçou-a. – Vamos pensar numa solução. – Daniel disse calmamente. Maria olhava para os amigos, para a esperança que ambos tinham, mas quase com toda a certeza que nada iam poder fazer em relação ao gémeo.
- O que vamos fazer? – Tatiana perguntou, agora mais calma, mas ainda um pouco ansiosa.
- Os desaparecimentos ocorrem de noite. Portanto vais ter que ficar a noite toda ao lado do Alexandre. – Disse Daniel.
- Eu posso fazer isso. Mas e depois? Se aquela coisa aparecer? – Maria olhou para Daniel.
- Não é uma coisa. Deve ser um homem, pelo que a Maria descreveu. Nada que não se possa controlar. Gritas por ajuda. – Maria parecia chocada com aquilo. – Não vais sair de casa à noite pois não? – Tatiana abanou a cabeça.
- Agora que sei isto, não.
- Eu não sei se aquilo é um homem. – Maria disse para Daniel. – Eu só vi um vulto e ouvi a sua voz. Pode ser uma outra coisa qualquer.
- Um extraterrestre? – Tatiana perguntou. Daniel rolou os olhos, sem se aperceber.
- Sei lá. Eu sei tanto quanto vocês nesse aspecto.
- Ou seja, nada. – Concluiu Tatiana. Maria baixou a cabeça. – Qual foi a rapariga que disse que não podia curar esse tipo de problemas, quando foste procurar curandeiras e bruxas na cidade?
- É uma rapariga que diz que descobriu os seus poderes há pouco tempo. Ela diz que é médium…
- Temos que lá ir. – Tatiana interrompeu. - Hoje não vamos conseguir ir. O autocarro já foi para a cidade. Amanhã vamos. Se precisarem de uma desculpa digam aos vossos pais e avó que me vão fazer companhia, que eu preciso de sair para me distrair. Eu falo com a minha mãe e ela não arranja problemas por causa disso. – Tatiana pausou e olhou para os amigos. – Isto se quiserem vir.
- Eu vou de certeza. – Maria disse.
- Yah. Eu também vou. – Que alternativa lhe restava. Pensou Daniel.
Foi complicado para Maria explicar aos pais o porque daquela súbita visita à cidade com os amigos. Mas com o apoio da avó, após apelar ao lado sentimental dela, com uma história sobre o facto de os gémeos precisarem de se distrair e de Tatiana precisar de ajuda para comprar um jogo/brinquedo que os entretece e animasse um pouco. Acabou por conseguir a permissão para ir lá.



quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Toque da noite: XI

A noite estava mais fria. Daniel teve que voltar atrás para apanhar um casaco. Havia algumas nuvens no céu, mas ainda se podiam ver estrelas. A Lua estava escondida por detrás de uma nuvem escura, mas nem assim os seus raios de luz pareciam desaparecer.

A caminho da casa da Maria ele estava animado. Ela tinha acabado de lhe telefonar porque precisava falar com ele. Embora ela estivesse atormentada, recorreu à sua ajuda e isso fazia-o sentir-se útil. Mas ele sabia que ela podia estar doente, que os sonhos que a atormentavam não eram um bom sinal. Ele entristeceu-se com a ideia. Quando estava perto da casa, viu as luzes acesas do andar de cima. As do quarto que raramente era usado. Deduziu que fosse onde os pais dela iam dormir. Pegou no seu telemóvel e mandou o toque a Maria.
A grande nuvem que bloqueava a visão da lua moveu-se, deixando os seus raios incidirem directamente na quinta. Silenciosamente pode ver Maria a sair pela porta principal, devagarinho para que ao pisar as ervas secas não fizesse muito barulho. Ao alcançar uma vereda, acelerou o passo. Passou junto a Daniel e puxou pelo braço, em direcção ao outro lado da garagem, de maneira a que se alguém espreitasse pelas janelas da casa, ninguém os visse. Daniel ficou a olhar para ela. Maria deu-lhe um abraço e começou a chorar. Ele passou suavemente a mão pela cabeça dela, envolvendo-a nos seus braços e fazendo-lhe carinhosamente festas.
- Está tudo bem! – Ele sussurrou. Maria sentiu-se levemente confortada.
- Desculpa. Mas isto é muito grave. – Ela disse limpando os olhos. – Eu ainda não sei como contar à Tatiana.
- Talvez não seja preciso.
- Como assim? – Daniel sentiu-se embaraçado. E disse-lhe a primeira coisa que lhe veio à cabeça. - Talvez chegue dizer-lhe para passar mais tempo com os gémeos.
- Não. Isso não chega. Eu vou mesmo ter que lhe contar tudo. – Daniel reparou então que Maria estava de pijama. Pensou numa piada, mas achou que não era o momento apropriado. Ela começou a andar de um lado para o outro, como se estivesse impaciente. – Ainda não consegui pensar numa maneira de lhe dizer isto, sem que ela fique com medo de mim.
- Fala a sério. – Daniel riu para Maria. – A Tatiana jamais ia ficar com medo da melhor amiga, só porque ela tem uns sonhos esquisitos. – Maria parou, de uma maneira em que ficou quase de frente para os raios luminosos da lua, o que fez com que os seus olhos verdes brilhassem. Daniel engoliu. Ela ficava tão bonita à luz da Lua, quase que parecia um ser mágico. Ele desviou o olhar dela.
- O que foi? – Maria perguntou surpresa com a rapidez com que Daniel desviou o olhar.
- Pareceu-me ouvir qualquer coisa. – Ele disfarçou. – Mas não é nada. – Ela ficou a olhar para ele, com os braços cruzados.
- Já contas-te alguma coisa à Tatiana?
- Não. Eu não lhe contei nada. – Maria não pareceu convencida. Mas descruzou os braços e encostou-se à parede da garagem. Daniel foi para o seu lado. Ficaram os dois a olhar para as estrelas por um momento. Ela sentiu frio, e abraçou-se. Daniel notou e tirou o seu casaco para o colocar em redor dos ombros dela. Ela sorriu-lhe.
- Não tens frio?
- Não. – Ele sorriu também.
- Já se deitaram todos. – Ela disse. – Estavam cansados da viagem.
- E tu não estás?
- Estou, mas não quero dormir. – Ela vestiu o casaco de Daniel e puxou o ziper até ao cimo. – Não posso sonhar outra vez com o acidente. É demasiado horrível. – Daniel ficou pensativo. - Talvez se tivesses alguém a teu lado ajudasse.
- Sim. Quando a avó sabe dos meus pesadelos ela dorme comigo e sempre que fico agitada ela acorda-me e acabo por sonhar só parte do acidente. Mas não me ajuda muito.
- A tua avó não sabe deste último? – Maria abanou a cabeça. Daniel ficou pensativo. Depois, voltou a olhar para ela.
- Eu não lhe posso contar. Ela faz parecer que acha os gémeos umas pestes, mas no fundo ela gosta muito deles. São quase como família. Ia ser muito doloroso. – Ela olhou para uma pedra que brilhava à luz do luar no chão. – Eu acho que a minha avó ia acabar por contar tudo à Teresa. E isso não ia ser nada bom para nós.
- Mas podiam evitar que o miúdo desaparecesse.
- Nunca consegui evitar os outros desaparecimentos. – Maria agachou-se e apanhou a pedra. – Nem o do meu avô. E olha que eu fiquei o tempo todo com ele.
- Como assim? Viste-o a desaparecer?
- Não. Fui à cozinha beber água, deixei-o na sala a ver televisão e quando voltei ele tinha desaparecido.
- Não ouviste nada?
- O meu avô tinha muita falta de ouvido. A televisão estava sempre muito alta. Se ele gritou ou pediu ajuda eu não consegui ouvir. – Maria atirou a pedra para longe. Ficaram em silêncio por um bocado.
- Não há nada a fazer a estas horas. – Daniel quebrou o silêncio. – Amanhã vamos falar com a Tatiana. E é melhor irmos dormir. Amanhã venho cá ter de manhã.
- Sim. – Maria tirou o casaco e deu um beijo na bochecha de Daniel. – Até amanhã!
- Dorme bem. – Ele afastou-se.
Quando já estava a distanciar-se olhou para trás a tempo de ver Maria a entrar em casa. Ele respirou fundo e olhou para o céu. Continuou a andar. Quando chegou aos portões da entrada da quinta, passou um dos vizinhos de Maria e da avó Medina numa bicicleta.
- Boa noite! – Cumprimentou o homem, de bochechas demasiado vermelhas que até à luz dos candeeiros da rua se viam.
- Boa noite. – Daniel respondeu.
- Veio de casa da velha Medeiros?
- Sim. Elas já voltaram de Lisboa. – Daniel encaminhou-se para o lado que ia dar à aldeia.
- Você anda de olho na neta dela. – Disse o homem revelando um estado leve de embriaguez, num tom de gozo.
- Tenha cuidado ao ir para casa. Não é seguro ir de bicicleta à noite nesse estado por essa estrada fora. – O homem riu e Daniel afastou-se, indo em direcção a casa. A aldeia era visível do portão, ficava relativamente perto. Mas o homem bêbado ainda tinha que percorrer cerca de um quilómetro ou dois.







quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Toque da noite: X

À noite, voltou a ter o mesmo sonho com os gémeos e o acidente. Acordou sobressaltada. Não era o tipo de coisa agradável para se sonhar à noite. Levantou-se da cama e correu a cortina da janela, de maneira a que nenhum raio de luz do candeeiro da rua pudesse penetrar no seu quarto. Ela sentia-se cansada, mas não se atreveu a dormir novamente. Sentou-se na cama, com os joelhos junto ao peito, abraçando-os. E ficou a pensar na melhor maneira de contar aquilo tudo a Tatiana. Pegou no telemóvel para ver as horas, tinha recebido uma sms e nem se tinha apercebido. Era de Daniel, a desejar-lhe boa noite e a dizer-lhe para que não se preocupasse, que ele ia pensar numa solução. Maria gostava de poder pensar assim, mas na verdade não o fazia. Era mais forte do que ela. Um pressentimento que se abatia sobre ela, de que nada podia fazer. Eram cinco da manhã. Ela continuou sentada na cama, mas o sono estava a voltar. Traindo a sua consciência. Por vezes dava por ela a fechar os olhos. Levantou-se e foi até à secretária, ligou o computador, decidiu aproveitar a internet rápida e ilimitada a que tinha acesso ali. Foi ao mail, visitou o you tube em busca de videoclips e entrevistas a celebridades. Mas o sono foi mais forte, e deixou-se de dormir na secretária.
Desta vez não sonhara com nada. Acordou com uma dor no pescoço. Mas correu para a cama. Ligou para Tatiana, sem ver que horas eram. Não sonhar com aquele terrível acidente não era coisa boa. O gémeo já podia ter desaparecido.
- Sim. – Uma voz muito sonolenta soou do outro lado da linha.
- Tatiana, sou eu. Está tudo bem?
- Maria. Estás-me a ligar às sete e meia da manhã, no final das férias do Verão. Só para me perguntar isso? – A voz sonolenta ia aumentando de tom. – Mas tu estás louca? – Disse dramaticamente.
- Desculpa. – Maria disfarçou. – Eu … estava com saudades.
- Está tudo bem. Dentro dos possíveis. Agora que já sabes. Eu vou voltar para a minha cama e vou dormir mais um pouco. E podes-me ligar mais logo.
- Ok. Desculpa.
Maria acalmou-se. Nada tinha acontecido. Mas podia acontecer.
O Domingo foi passado em vários centros comerciais da zona. Leonor estava animada por ir às compras com a filha. Ela tinha voltado a ser a mãe que Maria conhecia antes de ter pesadelos. Como uma mulher moderna, Leonor dava opiniões e sugestões nas roupas que a filha experimentava ou devia experimentar. A avó Medina ficou com o filho em casa. Para grande desgraça de Henrique, ele teve que se sujeitar aos resmungos da mãe sobre a sua alimentação.
No final do Domingo, Leonor decidiu que Henrique e ela deviam vir visitar Teresa e dar-lhe os pêsames pessoalmente. Maria não gostava da ideia, mas como tinha mais uma mala de roupa para levar, achou que era bem mais útil irem de carro. Além disso, as paragens e as voltas que se perdiam no autocarro em cada paragem faziam com que a viagem dura-se mais tempo. Assim, iam directas para casa.
Quando iam na estrada que dava acesso para a aldeia, Maria sentiu-se deprimida. Passaram pelo local do acidente. Milhares de pequenos brilhos incomuns ao terreno ofuscavam-na, ainda havia vidros partidos debaixo do grande sobreiro que estava lascado. Chegaram de noite, mas os faróis do carro eram suficientes para iluminar aquela área.
- O quarto de hóspedes tem lençóis lavados. A avó quer que tenhamos sempre a cama preparada não vá alguém precisar de dormir lá. – Henrique riu-se.
- Está sempre à espera de uma visita surpresa, não é mãe?
- Vocês sempre gostaram de aparecer sem avisar uma pessoa. – A velhinha resmungou, enquanto arrastava os pés até à cozinha.
- Isto parece estar com muito melhor aspecto. – Comentou Leonor, enquanto corria a vista pelo corredor e pela sala de estar. – A Maria tem-lhe sido bastante útil cá em casa.
- Quando os anos te pesarem, estou para ver se não é a Maria que te vai valer. – Gritou a velhinha da cozinha.
- Bom trabalho. – Disse Leonor a Maria. Ela sentiu-se corar. Na verdade, desde que foi às compras com a mãe só ouviu elogios da parte dela. As coisas pareciam ter mudado da noite para o dia. A simples notícia de que ela já não tinha sonhos, ou melhor, o facto de ter mantido ocultos os últimos sonhos, fez com que o grande buraco escuro desaparecesse.
- Eu vou levar-vos até ao quarto de hóspedes. – Maria subiu as escadas com as duas malas dela. Henrique seguiu-a carregando as malas dele e da mulher. Ouviu-se o relógio da sala de estar a tocar.
A avó Medina subiu para se juntar a eles. Levando a sua pequena mala de viagem. Foi até a um alto e antigo guarda-fato e tirou de lá duas grandes almofadas.
- As fronhas estão na primeira gaveta da cómoda. – Disse a Leonor. Ao ver a avó e a mãe entretidas, procurou pelo pai. Ele estava junto a uma cadeira, com uma das malas abertas, tirando o pijama dele. Maria escapuliu-se para o quarto e ligou para Daniel.
- Estou? – Disse o rapaz.
- Sou eu a Maria. – Maria sentou-se na ponta da sua cama. – Já voltei para a aldeia. Estou em casa da avó. Os meus pais quiseram vir também. Mas eu preciso de falar contigo urgentemente.
- Eu posso passar por ai. São dez e meia da noite, achas que os teus pais se vão importar?
- Não sei. Talvez. Iam achar estranho. Eles pensam que já não tenho sonhos premonitórios. – Ela mordeu o lábio. – Vem cá ter, mas não passes pelo portão. Espera por mim ao pé da garagem. Mandas-me um toque para o telemóvel que eu vou ter contigo logo.
- Ok. Mas o que tens de urgente para falar comigo ainda tem a ver com esses sonhos?
- Sim. – Maria ouviu passos a aproximarem-se do quarto dela. – Olha, tenho que desligar. Mas não te esqueças de mandar toque. – Um toque soou na porta. – Sim.
- Maria queres vir comer qualquer coisa? A tua mãe está a preparar umas sandes.
- Sim, eu vou comer qualquer coisa. – Colocou o telemóvel no bolso das calças de ganga e desceu para se juntar à família.




domingo, 29 de novembro de 2009

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São todos esses bocados de matéria fúteis,
Que nos causam agoiros na alma, agoiros no ser e no ter.
São todos esses bocados de matéria cruéis,
Que nos jogam como marionetas,
Guiando num mundo falso e matreiro.
São todos esses bocados de matéria onde nos encontramos,
Lançados num paralelismo irritante com um mundo irreal,
Que pinta tudo de perfeição.
O que se há-de fazer? O que há-de acontecer?
Não sei o que escrevo, não sei o que penso, não sei o que sinto.
Estou como num espaço vazio à procura de mim mesma.
Perdida num abismo, que talvez não seja tão perverso como eu julgo.
Sôfrega pela quietude, pela indiferença,
Mas nada se assemelha a tal a não ser a própria.
São pequenas chagas, golpes e quedas que me fazem assim.
Uma pessoa que não quer ser.
Uma pessoa que não quer ver,
Que não quer sentir, que não quer ter.
Uma pessoa que observa demais, sente demais, pensa demais…
O ar escapa-se dos meus pulmões,
Numa respiração dolorosa e macabra.
Tudo aquilo que eu sou, posso não o ser.
Mas não acabarei por o ser, nem só porque o pareça ser?
Tantas questões, tantas mentiras,
Tantas verdades por saber, tantas paixões por alimentar,
Tantas mágoas queimadas, tantas mágoas mal esquecidas…
Isto é um ciclo vicioso, uma perdição da minha alma,
Quando num estado desconhecido.
É o som pesado e magoado,
Do bater do meu coração.
Parece tão belo…
Tão triste…
Tão perturbado…
Sofre pela desilusão…
Pela frustração…
Sofre porque precisa ser amado…
Porque precisa amar…
Porque chora na noite escura,
À luz da Lua.



Será este o meu toque da meia-noite?
Aquele que eu sinto dentro de mim.
Aquele que se esconde num conto,
Em que digo à mágoa,
Ainda bem que te foste!
Em que o meu coração solto,
Correrá por um mundo,
Correrá pelo mundo,
Alcançando aquilo que nunca alcancei.
Aquela quietude…
Não a indiferença, mas o significado.
Como um coração esquentado
Por alguns segundos
De toda aquela estranha franqueza
De todo aquele ser que envolve a minha alma
Num momento estranho...


A todos aqueles que não me conhecem,
Apresento-vos o meu lado lunar.



Nada programado…saiu tudo instantaneamente, num dos meus momentos…daqueles momentos em que me sinto estranha e confusa…nem sei o título que lhe devia dar… alguma sugestão?

sábado, 28 de novembro de 2009

Toque da noite: IX

- Já estava a morrer de saudades. – Uma rapariga, muito morena, disse, apertando Maria intensamente. – Eu nem acredito que estás aqui. Vais voltar?

- Não. Ainda não estou em condições para voltar. – Maria disse, ainda abraçada à rapariga. – Eu também estava a morrer de saudades vossas! – E juntou-se uma outra rapariga ao abraço. Uma rapariga com muitas sardas e de cabelo alaranjado.
- Como foi a Republica Dominicana? – Perguntou à rapariga muito morena.
- Vocês têm que lá ir. Aquilo é lindo. E as praias…um autêntico paraíso. – A rapariga passou a mão pelos cabelos castanhos-escuros, de modo a tirar algumas mechas da franja comprida do rosto. – Simplesmente maravilhoso.
- Eu já não posso ouvir falar mais da Republica Dominicana! – Disse aborrecidamente Soraia, a rapariga do cabelo alaranjado. – Queres vir à praia?
- Eu não sei se deva. Acho que os meus pais planearam coisas… - Leonor apareceu na sala de estar, onde as três raparigas estavam sentadas no grande sofá de pele.
- Importa-se que levemos a Maria até à praia? – Perguntou Raquel. – Já há muito tempo que não estamos com ela. E ia ser só da parte da manhã, à hora de almoço já a tínhamos trazido de volta. – Ela apontou para a Maria. – E sinceramente está a precisar de dar um mergulho na água salgada.
- Oh! – Leonor surpreendeu-se. – Penso que não há problema. O Henrique planeou um passeio, mas acho que pode ser à tarde.
- Óptimo. – Soraia levantou-se num pulo. – Vai buscar o bikini e a toalha.
Leonor queria aproveitar o pouco tempo com a filha. Assegurar-se de que a filha estava curada, ou pelo menos a caminho disso. Mas não pode negar a companhia das amigas que sempre estiveram ao lado da filha doente. Até lhe prometeram que a trariam de volta à hora do almoço.
- Não te esqueças do protector. – Disse à filha.
Maria desceu com uma malinha, onde levava a toalha, o protector solar, os óculos de sol e o seu diário. Quando alcançaram a rua, Raquel, animadamente virou-se para ela e disse.
- A tua mãe não nos podia negar um bocadinho de tempo contigo. – O cabelo esvoaçava-lhe suavemente enquanto ela caminhava pela rua. – E acredito que tenhas muito para nos contar.
- Tenho. – Maria admitiu. – Vamos para a praia de autocarro?
- Nada disso. – Soraia sorriu-lhe. – A minha irmã vai levar-nos.
A praia ficava um pouco longe. Cerca de meia hora de caminho, mas foi a melhor meia hora de toda a sua viagem até ali. Raquel e Soraia faziam-na sentir-se como se tudo fosse como dantes. Quando se juntavam para ir às compras, ao cinema ou a algum concerto de musica. Raquel é a que fala mais, de tudo. Por isso passou parte do caminho a contar novidades e coscuvilhices de conhecidos de Maria. Quando a irmã de Soraia se foi embora, elas foram as três para o lugar da praia mãos vazio.
- A tua mãe estava muito contente há uns dias. Ela disse que já não tinhas mais pesadelos daquele tipo. – Soraia começou.
- Pelo menos é o que ela pensa. – Elas esticaram as toalhas na areia. – Ainda ontem tive um. – Soraia e Raquel trocaram olhares e depois olharam para Maria. – E ainda por cima foi com uma pessoa que eu conheço.
- Oh não. Quem? – Soraia ficou pálida e Raquel tinha os olhos muito abertos.
- Vocês não conhecem. Lá na aldeia da minha avó, houve uma família que sofreu um acidente de carro. O pai morreu e um dos filhos, que são gémeos, ficou consciente após o acidente e assistiu à morte do pai.
- Que idade têm? – Perguntou Raquel chocada.
- São novinhos, fizeram dez anos há dois meses. – Soraia levou a mão há boca. Raquel sentou-se na sua toalha e olhou para o mar.
- Como é que estas coisas podem acontecer? – Raquel suspirou tristemente.
- E o pior é que o miúdo é primo direito da Tatiana. Eu vou ter que avisá-la.
- A Tatiana é aquela que é mais sensível a essas coisas, não é? – Raquel soava séria.
- Sim.
- Vais ter que lhe contar. Talvez ela consiga evitar o desaparecimento do miúdo. – Maria e Soraia encararam-na com espanto. Ela rolou os olhos. – Ele é uma criança. Não é um caso comum. Se alguém estiver junto dele, constantemente, pode ser que consiga evitar o seu desaparecimento. Ou pelo menos testemunhar e poder explicar como ocorreu.
- Isso pode ser demasiado arriscado para uma só pessoa. – Maria tirou o protector solar da malinha. – Eu não posso deixá-la sozinha a enfrentar uma situação dessas.
- De momento é a melhor solução, ou uma espécie de solução que tens. – Raquel encarou-a e remexeu na sua mala enquanto falava. – Nós já tentamos outras vezes impedir o desaparecimento de pessoas, e nunca resultou. – Tirou uma pequena bisnaga da mala. – Protector facial. É bem melhor que esse para a zona facial.
- Obrigada. – Maria espalhou o protector na cara. – Eu tenho que voltar o quanto antes para a aldeia. Não sei quando é que o desaparecimento vai ocorrer.
- Já ligaste para aquele rapaz. O que já sabe de tudo.
- Não, ainda não liguei ao Daniel.
- Meninas. – Soraia interrompeu. – Vamos aproveitar a manhã. Tens tempo, logo à tarde para ligar ao Daniel.
- Tens razão! – Maria tentou animar-se, mas em vão. Portanto fez-se parecer mais animada. – Vamos dar um mergulho?
Foi uma manhã maravilhosa. Maria esqueceu os seus problemas por completo. Raquel passou quase todo o tempo a falar de um rapaz que conheceu ali mesmo, naquela praia. Soraia só se lamentava por causa de não conseguir ficar tão morena como Raquel e, enumerava todas as técnicas que tinha tentado.
Quando chegou a casa ligou logo para Daniel. Ele pareceu calmo ao ouvir Maria falar sobre o seu último sonho. O que a alarmou ainda mais. De alguma maneira, sentiu que não estava a ser levada a sério.
Depois de almoço, Leonor fez questão de levar Maria e a avó Medina a visitar o seu salão de cabeleireira. Por muito impressionante que era em comparação ao antigo, Maria não conseguiu sentir entusiasmo. Apenas esforçava um sorriso ou outro, para não parecer aborrecida o tempo todo. Leonor estava demasiado excitada em mostrar a sua última conquista profissional, não notou muito no humor que rondava a filha. Por outro lado, Henrique apercebeu-se e tentou falar com a filha sobre outros assuntos. Mas não obteve grande sucesso. Por isso, quando apanhou Leonor entretida a fazer um corte de cabelo à avó Medina, chegou Maria a um canto mais afastado e falou-lhe.
- Eu sei que estás aborrecida por nós te termos enviado para a tua avó. Mas tens que perceber que fizemos isso com a melhor das intenções. – Maria não o julgou. Ele vivia assombrado com a decisão que tomara há quase um ano, era impossível desconfiar que o mau humor da filha não pudesse ser originado por um outro tipo de situação. Afinal de contas, ele pensava que Maria já não tinha mais sonhos daquele tipo. – Mas filha. – Ele continuou. – Se te sentires recuperada. Podes voltar para casa. Podes começar o novo ano lectivo aqui mesmo, na tua antiga escola.
- Não pai. Eu não estou aborrecida com nada disso. – Ela sentou-se num dos cadeirões onde as clientes se sentavam à espera. – Eu já ultrapassei isso. Da mesma maneira que os meus sonhos. – Ela acrescentou estrategicamente. – E a avó precisa mais de mim do que nunca. Ela não pode viver sozinha.
- Podia vir morar connosco.
- Não me parece pai. Isso ia acabar por matá-la. Tu sabes que ela não vive sem o seu quintal e as suas galinhas.
-Então porque é que estás assim?
- Assim como?
- Mal-humorada. Quase que me atrevo a dizer revoltada. – Maria deu um sorriso torto ao pai. O que o assustou um pouco.
- Vou começar um novo ano lectivo. Vivo longe de bons centros comerciais. E já lá vai um ano que não como um bom cheeseburguer. Reduzi a minha maquilhagem porque não encontro o que quero lá na zona. E pior do que isso, viver perto da fronteira não é muito favorável para a internet, por isso a minha é lenta como tudo. E para terminar. Deixei de receber a minha mesada.
- Oh. – As sobrancelhas de Henrique juntaram-se. – Tens toda a razão, foi uma grande mudança. Quanto a isso da tua mesada…bem, nós pensámos que era melhor termos cuidado, tu não estavas nas melhores condições para receber mesada. – Ele aliviou a sua expressão facial, de preocupada para compreensiva. – Eu posso tratar disso da tua mesada. E tens toda a razão. Eu não era capaz de viver um ano inteiro sem sequer me dar o cheiro de um cheeseburguer. Provavelmente ia ficar bem mais revoltado e mal-humorado que tu. – Maria acenou com a cabeça em sinal de agradecimento. Lançando um olhar do tipo “ora vez como tenho razão”.
A avó Medina parecia animada com o novo corte de cabelo. Leonor ia-lhe explicando o que estava a fazer, enquanto a penteava e lhe secava o cabelo.
- Amanhã vou compensar-te isso. Vou pedir à tua mãe que te leve ao centro comercial e depois podes ir almoçar comigo ao MacDonalds.
- Obrigada pai. – Maria abraçou o pai. Ele pareceu um bocado comovido com o gesto, e retribuiu o abraço. Maria ficou mais bem-disposta por ver a cara de alivio que o pai fez.




terça-feira, 24 de novembro de 2009

Toque da noite: VIII

A Lua tinha acabado de nascer na noite. Um vento fraco acariciava o espanta espíritos que estava pendurado junto à porta das traseiras. Os gémeos, filhos do senhor Manuel, brincavam com expressões sérias, com os seus carros telecomandados no quintal da casa de Tatiana. A luz forte que iluminava todo o quintal provinha de uma lâmpada que estava por cima da porta. Era uma luz clara que contrastavam com o tom amarelado dos candeeiros da rua.
Um vulto do outro lado da cerca que limitava o quintal mexia-se vagarosamente. Escuro como a noite camuflava-se na perfeição. Os gémeos não o notaram, continuavam a sua corrida de carros. Ele parecia apenas mais uma sombra na noite. Maria sentiu um arrepio nas costas e disse aos gémeos para voltarem para casa. Mas parecia que eles não tinham ouvido. Teresa apareceu junto à porta.

- Está na hora de se irem deitar.
- Oh mãe! Já? – Resmungou um deles, sem tirar os olhos do seu carro.
- Deixa-nos acabar a corrida. – O outro levantou os olhos e fixou-a. – Por favor?
- Ok. Só mais cinco minutos e depois vão lavar os dentes. – Teresa voltou a entrar em casa. O vulto moveu-se novamente. Maria voltou a pedir aos gémeos que fossem para casa. Mas nenhum deles reagiu à sua presença. Ela tentou ver quem era o vulto, mas a escuridão venceu-a. Ela não conseguiu distinguir mais nada a não ser os contornos do que parecia ser um individuo corpulento, provavelmente um homem.
- Queres saber porquê? – Uma voz grossa disse num sussurro. Calma e distante, a voz parecia desvanecer-se ao terminar a pergunta. Os olhos de Maria esbugalharam-se e o seu coração batia selvaticamente no peito. Era o vulto que tinha falado. E de repente, um conjunto de sussurros imperceptíveis, de diferentes vozes, se juntara. Os mesmos sussurros que a assombraram antes, a mesma voz familiar. Em sonhos que premeditavam um desaparecimento e possivelmente uma morte.
- Queres saber porquê? – Repetiu aquela voz. Tão calmamente como antes. Maria sentiu lágrimas a escorrerem no seu rosto. Num choro silencioso, ela fixou os gémeos, que inocentemente brincavam com os seus carros, possivelmente esquecidos da desgraça que recentemente se abateu sobre a sua família.
- Eles são apenas duas crianças. Não os leves a eles. – Maria soluçou. O vulto permanecia num movimento suave, em torno da vedação. Imperceptível para quem não permanecesse algum tempo a olhar na sua direcção.
- Queres saber porquê? – Repetiu, no mesmo tom, e desvanecendo-se da mesma maneira. Maria engoliu em seco, sabendo que não podia fazer nada a não ser responder.
- Sim. – O vulto aproximou-se de Maria, envolvendo-a numa escuridão, mais profunda do que a noite. Mas nem assim, conseguiu distinguir uma forma do vulto. Quando voltou a ver luz, era uma manhã. Ela estava sentada num carro familiar, no meio dos dois gémeos, no banco de trás. Manuel ia no lugar do condutor e Teresa ao seu lado. Falavam animadamente sobre uma surpresa que iam oferecer a Tatiana no dia de anos dela.
- Ela vai adorar. Já falei com a coordenadora e tudo. Os pais deram permissão. E ela pode levar duas pessoas como companhia. – Disse Teresa. Depois virou-se ligeiramente para trás. – Meninos, isto não é para contar à vossa prima. Vai ser uma surpresa para ela.
- Está bem! – Disse um dos gémeos.
- Nós não vamos contar. – Completou o outro gémeo. Eles brincavam com os bonecos miniaturas de heróis de acção. Maria sentia pequenas correntes frias, quando os gémeos metiam as mãos dentro dela. Ela era como um fantasma naquele cenário. Um medo percorreu-lhe o sentido. Era óbvio o que ia presenciar naquele momento. Manuel guiava pacientemente e estava numa conversa calma e animada com a mulher. Os gémeos brincavam, mas não faziam nenhum barulho que pudesse distrair Manuel e a sua condução. Como é que o acidente podia ter ocorrido? A estrada tinha sido arranjada recentemente, com uma nova camada de alcatrão. Maria ficou atenta no caminho.
Mas, de um momento para o outro, um grande cão de guarda correu para a estrada. Ao aperceber-se Manuel tentou desviar-se e acabou por sair da estrada. Derrapou com a travagem repentina e um enorme sobreiro pareceu aproximar-se do carro. Manuel tentou desviar o carro para a direita, mas era tarde de mais. Maria fechou os olhos e colocou os braços em frente da cabeça num reflexo. Um grande estrondo soou, todos os corpos foram impulsionados para a frente. Maria nunca tinha tido um acidente de viação, ela estava congelada com o terror e a forma como cada imagem que passava na sua frente parecia ser em câmara lenta. Quando voltou a abrir os olhos, o grande sobreiro tinha amolgado quase na totalidade o carro do lado do condutor, Manuel parecia quase esmagado no assento, com a face encostada ao encosto do acento comprimido pelo volante. Teresa estava desmaiada ao seu lado, um fio de sangue escorria desde a testa até à boca, uma das pernas tinha desaparecido no emaranhado de metal. Maria olhou para o lado para ver os gémeos. Um deles, o que estava por detrás do banco do condutor, estava encolhido no assento, com as pernas junto ao peito, parecia ter-se safado do aperto que o banco da frente estava a fazer contra o de trás. Mantinha os olhos fechados e estava a chorar freneticamente. O outro gémeo, também parecia ter desmaiado. Tinha um ferimento no lábio, parecia ter-se mordido com o impulso da travagem. Maria olhou para ela, estava intacta, aparentemente. Tentou tocar no gémeo que chorava, mas foi-lhe impossível, a mão com que lhe queria tocar, atravessou-o.
- Mãe! Mano! Pai! – O gémeo que estava consciente gritava. Ninguém lhe respondeu. Ele, banhado de lágrimas, tacteou pelo assento e pegou no que parecia ser uma pequena bolsa. Tirou de dentro um telemóvel e ligou para alguém. – Avó! – Ele gritou no que pareceu ao mesmo tempo ser um choro. Ouviu-se uma voz alarmada do outro lado. – Tivemos um acidente! Acho que estão todos mortos! – O rapaz chorou ao telemóvel. Ficou a chorar por um bocado. Ele tentou abrir a porta, puxando e empurrando, mas ela nem se moveu. – Despacha-te avó! Eu não consigo abrir a porta.
O miúdo continuou a chorar, e de quando em quando ele chamava pela família, dando um toque no irmão que nem se mexia. Passado algum tempo chegou ajuda. Conseguiram retirar os gémeos sem dificuldade, um deles ainda se mantinha inconsciente. Pouco depois também conseguiram tirar a mãe deles, também ainda inconsciente. Maria assistiu a tudo, lavada em lágrimas e aterrorizada com aquelas imagens. Ela ficou paralisada no lugar do carro.
- É por isso. – Ouviu aquela voz novamente. Os sussurros começaram a encher a sua cabeça, o som das conversas dos que estavam a socorrer começaram a diminuir. Viu-se novamente junto à vedação que limitava o quintal. Ao lado do vulto, observando os dois miúdos a brincar. – Ele viu o cão a correr em direcção à estrada muito antes do condutor. E não disse nada. – Sussurrou a voz. – Assistiu à sua morte e saiu totalmente ileso. – Maria contorceu o rosto com horror e tentou visualizar o vulto. Tentou detectar uma cara. – É por isso. – Voltou a sussurrar a voz.
- Mas é uma criança. Tem apenas 10 anos, ele não podia adivinhar que isso ia acontecer. – Maria gritava de raiva. Teresa voltou a aparecer.
- Já passaram mais de cinco minutos. Já são dez horas e um quarto. Cama, já! – Teresa não estava chateada, o brilho que ela costumava ter quando falava tinha desaparecido todo. Agora era mais uma voz monótona, com expressão apática que comandava os filhos.
Os gémeos foram buscar cada um o seu carro. E Maria viu o vulto elevar-se no ar, sob o céu estrelado. Maria gritou.
- Não! Não faça isso! Ele é só uma criança! – O vulto ignorou os gritos de Maria. O coração dela batia com muita força, quase que lhe doía o peito. Sentiu um formigueiro nas pernas, as mãos a tremerem e num instante ela estava na sua cama.
- Oh não. – Maria disse para consigo, numa voz controlada. Estava toda transpirada, e sentia a pressão no peito, das batidas frenéticas do seu coração. Ela foi até à casa de banho lavar a cara. Foi até ao quarto da avó, mas esta dormia que nem uma rocha. O único movimento visível, era o movimento respiratório, o peito subia e descia, por baixo dos lençóis. Maria voltou para o quarto, eram quatro horas da manhã. Sentou-se na cama e apenas chorou.

sábado, 31 de outubro de 2009

Quando um homem desespera

O vento soprava de forma intensa lá fora. Os cortinados dançavam agitadamente projectando sombras assustadoras na parede. As janelas batiam, num som ensurdecedor. Marco levantou-se para as fechar. Tinha que comprar fechaduras novas, aquelas já não aguentavam o vento. Foi buscar dois cabos de vassouras e colocou-os de forma que a janela não voltasse a abrir. Respirou fundo e voltou para a sua cama. Abraçou a sua mulher, que estava muito enroscada nos cobertores, e assim se deixou de dormir, envolto no calor dela.
De manhã o vento estava mais calmo. Abriu os olhos por causa de alguns raios de sol que se escapuliam por entre os cortinados rotos. Estava sozinho na cama, abraçado à sua almofada. Piscou os olhos, como se não estivesse a ver bem, mas depressa se consciencializou de que estava mesmo sozinho. Foi até à cozinha, encheu a chávena de café, pegou num bocado de pão do dia anterior, barrou com um pouco de margarina e comeu.
- Nem penses que eu vou voltar. Estou farta da tua preguiça, da tua estupidez e da tua frieza. Desta vez não é um aviso. Sou eu a ir mesmo embora. – A mulher arrumava nas duas malas, todas as suas roupas e bens. – Cansei-me de esperar. Tu fazes sempre a mesma coisa. Dizes que tudo vai mudar para melhor, mas no dia seguinte voltas à mesma. – O homem estava encostado à parede sem dizer uma única palavra, sem qualquer expressão de incómodo na cara. Até parecia que estava tudo bem, ele tinha um leve sorriso na cara, meio sumido, mas que dava para notar. – Marco. Tu estás a ouvir-me? – Disse a mulher, com grossas lágrimas a correr-lhe pelo rosto.
- Estou querida. – Desta vez Marco esboçou um grande sorriso na cara. – Fazes como quiseres. – Ela expirou com desgosto. Pegou nas malas e saiu pela porta do quarto. Ele nem se mexeu, manteve-se encostado à parede a olhar para a porta. Ela voltou atrás, entrando no quarto e atirando com qualquer coisa para cima dele.
- Toma a porcaria das chaves! Não vou precisar mais delas! – Ficou por um momento a olhar para ele. Chocada com a sua falta de reacção. E saiu. Dessa vez para sempre.
Esta lembrança era-lhe muito dolorosa. Ele gostava mesmo dela. Ela era a única pessoa com quem ele realmente falava e queria proteger.
Acabou de comer e foi até ao telefone. Tinha várias mensagens guardadas, da sua mãe, do patrão, mas nenhuma dela. Ele pegou no casaco e no maço de cigarros e saiu. Aquela casa já não era o que era. Agora causava-lhe dor.
Desceu pela rua. Estava pouco movimentada devido à hora da manhã. Ele acendeu um cigarro e fumou enquanto caminhava sem rumo. Uma chuva fininha começou a cair, mas ele ignorou.
Ao fim de um bocado ele sentiu a cabeça à roda, os olhos ardiam-lhe e ouviu um zumbido demasiado forte. Teve que se por de joelhos, largando o cigarro no meio do chão e levando as mãos aos ouvidos.
- Não! Outra vez não! – Gritou. – Seu sacana!
Acabou por cair de costas no chão gelado, rebolando com as mãos nos ouvidos. Até que perdeu a consciência.
- Está bem? – Sentiu um toque no ombro. – Senhor. Está-me a ouvir? – O toque pareceu um pouco mais forte.
Marco sentou-se.
- Estou óptimo, obrigado. – Disse com um sorriso nos lábios. – Foi só uma ligeira baixa de tensão. – O rapaz que estava à sua frente ajudou a levantar-se. Marco olhou em volta mas não viu ninguém. – O que estás a fazer sozinho na rua a esta hora?
- Vou para a escola. Tenho que ir a pé porque não tenho dinheiro para o autocarro. E como é longe tenho que ir cedo. – O rapaz era afinal uma criança. Daquelas que são muito altas e parecem mais velhas. Marco levou a mão ao bolso, mas estava vazio.
- Não trouxe a minha carteira. – Então olhou nos olhos do rapaz. – Mas, de qualquer das maneiras esse exercício faz-te muito bem. Obrigada pela ajuda. – E Marco afastou-se.
Quando perdeu o rapaz de vista, Marco ouviu os gritos dele. Gritos aflitos e de dor. Durante uns minutos os gritos ecoaram pela rua de forma intensa até que cessaram por completo. Marco sorriu de forma mais intensa, bem-disposto e aproximou-se da montra mais próxima, olhando para o seu reflexo.
- Ainda não superaste a perda da tua namoradinha? – Ele olhou com uma expressão divertida para o seu reflexo. – É melhor superares depressa. És um homem, não um rato. Deixa-te de todo esse sentimentalismo idiota. – Ficou a encarar o seu reflexo por um tempo. – Se não fosse eu, tu não eras nada. – Marco sentiu uma guinada na cabeça. – Isso não me afecta. Tu és apenas….qual é mesmo a palavra adequada?... Ah, já sei….Tu és apenas um homem fraco. – Marco riu com vontade e continuou o seu caminho.
Nessa tarde, quando a noite já estava a chegar. Marco acordou em casa. Levou as mãos à cabeça, ao ter um vislumbre de reflexos mentais do que tinha feito durante o dia. Levantou-se, pegou no casaco e voltou a sair. Uma revolta atordoante envolvia-o numa fúria. Bateu a porta com força quando saiu. Ele tinha que falar com alguém. Ele tinha que contar o que se estava a passar. Então ocorreu-lhe um local que ele não visitava há anos.
Entrou pela comprida porta de madeira. Os seus passos ecoaram por todo lado. Ao longe, milhares de velas estavam acesas em frente aos vários altares com figuras de Nossa Senhora de Fátima e S. José. Uma enorme cruz, estava no altar central, com uma imagem sangrenta de Jesus Cristo pregado. Uma mulher saiu do confessionário, agachando-se e benzendo-se ao passar em frente de um outro altar secundário. Marco foi em direcção ao confessionário, entrou e sentou-se no banco ligeiramente almofadado. Um padre com uma voz profunda e de alguém com já alguma idade falou algo sobre pecados e purificação da alma. Marco respirou fundo.
- Perdoe-me padre que eu tenho pecado.
- Estás aqui para poderes confessar os teus pecados, meu filho.
- Já faz muito tempo que não entro numa igreja.
- Deus recebe sempre de braços abertos os arrependidos e perdoa-lhes. – Marco ficou em silêncio. – Confessa os teus pecados para que ele te possa perdoar.
- Padre, eu tenho enganado muita gente. Eu sou duas pessoas diferentes.
- Como assim meu filho?
- Padre, eu sou eu mesmo neste momento, mas há dias em que eu não tenho controlo nas minhas acções. Eu fico horrorizado com as acções desse meu outro. Eu falo comigo mesmo e tenho noção do meu outro eu. Mas não o consigo controlar.
- O que te faz pensar que és duas pessoas diferentes e não tu num dia mau?
- Padre, as coisas que o meu outro eu faz são demasiado horríveis para que fosse eu a fazê-las.
- O que é que o teu outro eu faz?
- Magoa seriamente as pessoas. Afasta-me daqueles que amo. Mancha o meu nome através das minhas mãos. Denigre a minha vista com actos horrendos.
- Meu filho. Reza com muita força. Eu rezarei por ti, hoje mesmo e daqui para a frente. Mas o que faz o teu eu de tão horrendo?
- Ele, ele… – Marco sentiu-se quase a contar tudo. Mas era demasiado tenebroso contar aquilo tudo. Por isso levantou-se e correu para fora da igreja. Não podia viver mais naquele inferno, naquela prisão estúpida. Mas ai voltou a sentir a cabeça à roda, os joelhos a arderem-lhe e a ouvir o forte zumbido. Caiu no chão. Mas levantou-se como se nada fosse ao fim de segundos.
- Oh. Estavas a querer acabar com a diversão? – Marco caminhou em direcção à ponte. Que era visível em frente da igreja. – É verdade que já me começas a aborrecer. Sempre deprimido e idiota. Mas só me vou descartar de ti depois de esticar o pernil. – Continuava falando sozinho. Uma mulher que passou por ele olhou-o. – Sim, querida. Enlouqueci e estou a falar sozinho. Estava a pensar como seria espetar um punhal no teu peito. – A mulher ficou chocada e começou a correr. – Podes correr. Mas seu eu quisesse apanhava-te. – Gritou Marco, enquanto a mulher escorregava numa possa de água enquanto corria. – Mulheres. Pensam sempre que podem vir a correr mais do que um homem. – Marco meteu a mão no bolso e tirou um cigarro, que acendeu calmamente e deu uma passa. – Olha. Vou dar-te um presentinho. Visto que estás a pensar atirares-te da ponte, vamos brincar um bocadinho.
No outro dia de manhã. O padre que ouviu a confissão de Marco, estava a pensar numa maneira de o ajudar. Ele reconheceu a voz de Marco. Era filho de uma das mulheres mais devotas da igreja. Desde os treze anos que não aparecia naquela igreja. Era filho de gente boa e modesta, mas definitivamente algo não estava bem. O padre ligou a televisão e reconheceu a fotografia de Marco no canto do televisor.
- Oh meu deus! – Disse em choque, sentando-se numa cadeira.
- No início da noite de ontem, perto da ponte Cristóvão Albuquerque, foram assassinadas cerca de doze pessoas. Um homem de 27 anos, Marco Santana, enlouqueceu de um momento para o outro e foi apunhalando pessoas até chegar ao centro da ponte, de onde se atirou de cabeça. Acabando por morrer. Dizem as testemunhas que ele foi apunhalando aleatoriamente, conseguindo esquivar-se de todos os que o tentaram impedir. E foi confirmado que a arma do crime foi a mesma que foi utilizada em mais outros cinco assassinatos misteriosos que ocorreram na zona. Tendo assim, marco Santana matado cerca de dezassete pessoas de que se tenha conhecimento até à data. Passo agora á jornalista Fátima Bagulho que está no local onde foram feitas as vitimas…
- Oh meu Deus! – O padre benzeu-se. E correu para o telefone. – Estou? Irmã? Tenho de lhe contar uma coisa. Eu ontem recebi um homem que se foi confessar e que eu desconfiei que podia estar a sofrer de possessões. Eu não fiz nada em relação a isso, decidi esperar por hoje. E agora ele está morto. Veja nas notícias. É o Marco Santana.