terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Crime do coração

És apenas mais um caso,
Aquele que por todos desprezado.
Sabes que foste abandonado,
E que isso não foi mero acaso.


Sentes a dor ardendo dentro do teu peito,
Como se o teu coração fosse corrosivo,
E ateado pela tua acção, num gesto perfeito,
Num momento que foi decisivo.


Toda a sua dor tornou-se tua,
Viste os seus olhos de agonia,
Ela chorava, meio nua,
E conseguiste ver a ironia.

Tu viveste a tua própria traição,
Onde perdeste o teu coração.
E lá enfrentaste o teu medo,
Embora já não fosse cedo.


Embora tarde, mantiveste-te fiel,
Gentilmente alçaste o cinzel,
E afundaste-o no seu peito,
Num gesto macabro mas perfeito.


O liquido vermelho escuro jorrou,
Como se libertasse de uma prisão,
O seu gemido e o seu choro cessou,
E levou a mão ao coração.
Tão simples e natural,
O sangue e as lágrimas,
Numa doce comunhão passional
Se diluíram perante as lástimas.


Arrependido ou não,
Sabes que não foi uma ilusão.
E perante outros o afirmaste,
Que com amor a mataste.

Julgado pela sociedade,
Amaldiçoado pela atitude,
Agarras-te à loucura,
Como uma coisa só tua.

Pois só assim te permitirão,
Viveres na solidão.
Sem qualquer arrependimento,
E sem sofrimento.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Gotas de Longevidade II

Perto da hora do jantar, a mulher e as crianças voltaram. A velhota pode ouvir as duas crianças a subir as escadas. E um bater na porta. Um rapaz com cerca de sete anos, de cabelo preto muito brilhante, espreitou.
- Olá avó! – Ele disse timidamente, ainda por detrás da porta.
- Venham cá. – Disse a velhinha, com o mesmo sorriso que tinha invadido o seu rosto nessa tarde. Uma menina, de quatro anos, acompanhou o irmão. Ela tinha os olhos castanhos amendoados, e o cabelo comprido num ondulado escuro. – Querem ouvir uma história da vossa velha avó? – A menina, que antes estava séria e um pouco temerosa, sorriu e acenou com a cabeça num pequeno sorriso.
- Sim. – Disse o rapaz. Sentando-se aos pés da avó de pernas cruzadas, em cima do tapete antigo. A menina imitou o irmão, sentando-se ao seu lado. A senhora deu uma olhada ao frasco e sorriu com mais intensidade.
- Tinha cerca de dezoito anos. Era a moça mais bonita da cidade. – Ela apontou em direcção ao velho guarda-fato. – Querido. Tira uma caixa que está logo detrás da primeira porta. – O rapaz foi ao guarda-fato e pegou na caixa, que logo foi entregar à avó. A velhinha tirou algumas das suas fotografias que estavam lá dentro, mostrando aos netos. – Quase todos os rapazes tinham uma paixoneta por mim e todas as raparigas me invejavam. - E mostrou uma fotografia dela, onde segurava um cesto de flores. - Esta era eu.
- Oh. – Disse a menina. – Era muito bonita! – A menina observava com espanto e admiração a foto da avó quando era nova. A avó sentiu uma pontada quando a neta disse: ERA muito bonita. Mas voltou a olhar para o frasco, esquecendo a dor que a velhice lhe trazia.
- Um dia. Eu e mais duas amigas. Essas raparigas com o chapéu grande, nessa fotografia. – Apontou para outra fotografia. – A do cabelo mais escuro era minha prima, já era mãe de três meninas. Fomos fazer um piquenique, que há muito planeávamos, acabando depois por passear pelo jardim. Onde encontrámos uma rapariga nova, da mesma idade que eu tinha na altura, a chorar. Era uma rapariga que conhecíamos de vista, por frequentar os mesmos locais que nós. Mas nenhuma delas fez caso e continuou a caminhar. Eu parei e fui até à rapariga. – A velhinha olhou através da janela, para o céu que estava a escurecer. – Era uma das raparigas menos formosas, provavelmente uma das que mais inveja tinha da minha beleza. Mas chorava tanto que eu senti necessidade de saber o que ela tinha. – A velhinha calou-se pensativamente.
- Porque é que a menina chorava, avó? – Perguntou a rapariguinha.
- Ela esteve um pouco relutante em me contar. Mas eu insisti e acabou por me dizer. Ela gostava muito de um rapaz, que infelizmente era muito rico. Eles eram amigos, mas o rapaz procurava casar com uma moça bonita e não com alguém como a rapariga. Eu perguntei-lhe como é que ela sabia disso. E ela disse que lhe tinha confessado os seus sentimentos, embora não fosse próprio da época. Ela gostava tanto dele, que arriscou. Ele disse-lhe que também gostava muito dela, mas que os pais o estavam a pressionar para pedir em casamento uma outra moça, muito mais bela e filha de gente com dinheiro. A rapariga também tinha dinheiro, tanto que se a outra o recusasse em casamento, ele teria que a pedir em casamento a ela.
- Mas ele amava-a? – Perguntou a menina.
- Ele tinha-lhe dito que sim. Mas que só podia casar com ela se a outra recusasse. Eu senti pena da rapariga. E disse-lhe para ter esperança. E perguntei-lhe se ele conhecia a outra rapariga, se já alguma vez tinham falado. Ela disse que não, que nunca se tinham falado. Apenas se tinham visto uma vez ou outra. Tentando com que ela parasse de chorar, disse-lhe que era possível a outra rapariga lhe ia recusar o pedido de casamento, pois nunca tinham falado. – A velhinha aproximou a cadeira de rodas da cama. Ficando de frente para as fotografias que os netos seguravam. – Então ela disse que isso poderia acontecer. Ela disse-me que a rapariga, a quem o rapaz de que gostava ia pedir em casamento era eu.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Noite

Muito para além daquilo que sinto,
Encontras-me no final de cada dia,
Esqueço todo aquele meu conflito,
Envolvida pela tua presença sombria.


A Lua ilumina-te quando lho pedes,
Eu ilumino-me quando tu apareces.
Sabes que sofro com a tua ausência,
Mas sem ti o que me resta é a paciência.
Surges sempre serenamente,
Envolta pelos seres que te seguem.
No burburinho nocturno que te sente,
Para sempre te perseguem.


Serei eu mais uma criatura que te segue?
Hipnotizada pela tua beleza.
Jamais saberei, com toda a certeza,
Se és tu ou se sou eu, ou mera ilusão,
Para esta tamanha perseguição.


Posso apenas deixar-me levar,
Por todas as tuas palavras,
Por todos os teus suspiros.
Para no dia seguinte me levantar,
Inspirada pela beleza que emanavas,
Submersa nos teus vestígios…

Gotas de Longevidade I

- Mãe, nós vamos até ao parque. Os miúdos querem ir andar de baloiço. Nós voltamos à hora do jantar. – Uma mulher disse junto à porta Para uma outra mulher já de idade, que estava sentada numa cadeira de rodas. Esta não lhe respondeu, manteve-se quieta, olhando para a janela. Ouviu-se a porta fechar e um pouco mais tarde a porta da rua do andar de baixo também bateu. A idosa moveu a sua cadeira de rodas, de modo a  ter uma boa visibilidade da rua. Duas crianças corriam de um lado para o outro, mas sempre perto da mãe. Iam-se afastandom na rua, engolidas pelo arvoredo que se erguia, moldando a longa rua, escondedno o caminho a quem quisesse observá-lo.
O olhar triste da idosa era demasiado profundo. Ela respirava com dificuldade e tinha a mão pousada sob o peito. Voltou a deslocar a cadeira de rodas e parou em frente a um grande espelho antigo. Ficou por uns tempos, imóvel, a mirar-se. Absorta em todo o seu reflexo, perdida no desgosto do que observava. Desfeita de toda a esperança que mantivera enquanto jovem, da beleza eterna.
Cada ruga era uma prova dos muitos anos que lhe pesavam, testemunhas duma vida experiente e quase esgotada.. Os olhos, que outrora tinham sido de um castanho avelã, muito vivos, tinham agora pequenas manchas azuladas, esbranquiçadas. Necessitavam  de uns óculos de lentes grossas para ver alguma coisa. Uma lágrima caiu. E a senhora fechou os olhos. Desviou a cadeira de rodas e voltou para o mesmo sítio onde estava anteriormente.
Alguém bateu na porta com um pouco de força, a mulher de idade também já não tinha uma audição boa. Mas embora tenha ouvido a batida, ela não se mexeu, nem respondeu. Um homem com cerca de quarenta anos entrou.
- Olhe, chegou um embrulho para si há bocado. – Ele aproximou-se da senhora. – Parece ser um presente. – O homem sorriu. A velhota girou levemente o pescoço e ficou a encarar o presente, surpresa. Estava embrulhado num papel de mercearia, como se fazia antigamente. – Não o quer abrir? – Perguntou meigamente o homem, enquanto o colocava no colo da velhota. Ela com as mãos trémulas desmanchou o nó simples do laçarote e desdobrou a folha que envolvia uma caixa pequena. O homem pegou nos restos de papel.
- Vou deitar isto para o lixo. – A velhota abriu a caixa e um cartão caiu. – Eu já o apanho. Se quiser também lho posso ler. – O homem saiu do quarto. A velhota olhou para dentro da caixinha, lá dentro estava um pequeno frasco conta-gotas. O homem voltou a entrar no quarto.
- Ora vamos lá ler este cartão. – A velhota encarou-o, meio que ansiosa por saber o que lá estava escrito. – Para a minha querida Lucy. A qual nunca esqueci. Aqui está o que lhe prometi há muitos anos atrás. Com muito carinho Elisabete Andrade. – O homem olhou para a velhota. – Sabe quem é? – A velhota sorriu e acenou que sim com a cabeça. Os olhos humedeceram-se e a sua respiração acelerou. – Oh! Tenha calma. – O homem riu, passando o braço em redor da velhota. – Alguma velha amiga?
- Não. Uma velha promessa realizada. – Disse a velha, com a sua voz fraca. Sorrindo e apertando o frasco junto ao coração.
- O que é isso? – O homem perguntou.
- É água benta milagrosa. – Disse a velhinha. – Benzida directamente pelo papa. – Ela sorriu. – Traz-me água. – O homem saiu e quando voltou, ele trouxe um copo de água. – Lê-me o que está escrito no frasco.
- São umas letras bem pequenas. – Ele estreitou os olhos para ler melhor. – Colocar uma gota apenas em 0, 33 cl de água. Para beber antes de dormir. Cada gota vale um ano. Não se pode tomar mais de uma gota por mês. Para que é isto?
- Isto é para ajudar a curar a velhice. – A velhinha estava claramente feliz. O homem sorriu carinhosamente.
- Mas a velhice assenta-lhe tão bem. – Ele disse. – Tem a certeza que isto é só água?
- Água benta milagrosa. – Repetiu a velhota, desta vez com um sorriso enrugado e permanente no seu rosto.
- Muito bem. – Ele disse. – Estou lá em baixo se precisar de alguma coisa. – O homem beijou-lhe a testa e saiu do quarto.
A velha permaneceu a olhar para o frasco. Sorrindo.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Quando a emoção se apaixonou pela razão



Talvez sejam as tuas sábias palavras
Que me encaminham na escuridão.
O caminho certo nesta vastidão,
É o que as torna tão raras.


Não é a ignorância que me assola,
Mas sim a minha impotência.
Toda a emoção que me enrola,
Mas tu mostras-me a tua ciência.


Toda a incompreensão,
Se processa em algo mais.
Um outro estadio de resolução,
Com o final de todos os jogos mentais.

Todo o labirinto cheio de emoções,
Num só sopro se desfez tristemente.
Desiludindo todos pela facilidade,
Com que se perderam aqueles corações,
Como se fossem pó, desfazendo-se suavemente.
Emancipando toda a racionalidade.

O que outrora fora um jardim selvagem,
Deu lugar a uma organizada paisagem.
Onde todos os sonhos são ambiciosos,
Mas nem por isso, deixam de ser corajosos.


É o processo que nos afoga,
A cada dia, com cada gota de suor.
As lágrimas, deitaram-se fora,
Porque já nada podia ser pior.


Foi assim, a entrega total,
A todo o conjunto memorial.
De que o racional veio para ficar,
Sem ser traído pelo possível amar.


Foste tu que me disseste: “Esquece o teu coração,
Ele não passa de uma história de encantar.”
Foi assim que me mostraste a verdadeira razão,
Pela qual jamais eu irei te abandonar.

Toque da noite: XXI

Maria, Tatiana e Daniel entrara, na Universidade Nova de Lisboa, elas no curso de Ciências Farmacêuticas e ele foi para Economia. Maria está a viver com os pais e alugou os quartos de hóspedes aos amigos,
Tatiana anda desconfiada que há uma rapariga da aldeia interessada no João e teme vir a ter que competir com ela. Mas como é sabido e ela diz, confiança é a base de uma boa relação. Por isso, ela acredita que tudo o que tem que fazer é confiar no João, até porque não pode fazer mais nada se quer continuar a estudar. Maria, conhecendo como a conhece, acredita que vai dar muita luta à outra rapariga, acabando por sair triunfante, mesmo que esteja longe.
Leonor ficou muito entusiasmada com a ideia de a filha ter um namorado. Já Paulo não acha muita piada e muito menos quando Leonor se ofereceu para alugar um dos quartos a ele.
- Mais vale que namorem debaixo do teu nariz do que num sítio qualquer, se calhar sem condições. – Disse-lhe Leonor. – E assim, tens mais controle neles.
- Não te custava muito teres perguntado antes a minha opinião…
- Mas querido, tu viste a carinha deles. Estavam aflitos que não conseguiam encontrar um quarto em condições. – Paulo acabou eventualmente por concordar com Leonor. E mesmo ao fim de algum tempo, acabou por gostar de Daniel.
Quanto aos sonhos. A vinda para Lisboa só dificultou mais a vida de Maria. Ela sonha agora com pessoas, com as quais pode ter-se cruzado com elas uma vez e não se lembra das suas caras, e só mais tarde as encontra na paragem de autocarro, na escola, ou até mesmo na biblioteca. Reconhecendo-as dos seus sonhos. Continua a ser desagradável. Mas ela lida melhor com a situação. Não fala do assunto com a mãe. Mas o pai apanhou Maria e Tatiana numa noite a falarem do assunto e acabou por saber tudo. Concordou com elas em não dizer nada a Leonor e apoia a filha.
Maria sente-se mais segura e feliz. Triste pela perda da avó, mas sente-se rodeada de pessoas que gostam dela e a apoiam, e isso é o mínimo que ela pode pedir.
Mas ainda assim, não deixa de ter um mau pressentimento, desconfortável em relação a algumas pessoas. É uma coisa nova. Recentemente é em relação a um bibliotecário misterioso na escola de Maria e Tatiana. Há algo de errado com ele. A maneira como observa tudo e todos, a forma como fala… Tatiana nunca quer entrar lá quando têm que ir à biblioteca e ele está lá, diz que a faz arrepiar-se toda. Daniel fica atento, porque foi Maria quem lhe falou disso. Ele é estranho, não no sentido de ser uma pessoa que se distinga na sociedade pela forma como se veste ou comporta. Mas pela forma como parece saber tudo e em como o ambiente em sua volta se transforma. Fala de maneira sábia e está sempre atento quando Maria entra na Biblioteca. Parece uma pessoa demasiado perfeita, e no entanto, algo obscuro e pesado gira em seu torno. O ar fica denso e Maria sente-o. Acabando muitas vezes por ter que sair, quando se encontra na mesma sala que ele.
Desta vez, Maria optou, por conselho de Daniel e Tatiana a não se envolverem em mais nenhuma situação perigosa. Pelo menos até conseguirem acabar o curso. Há um futuro esperando por eles…



Final