sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Toque da noite: XX

Durante o Verão. Paulo e Leonor decidiram passar as férias na quinta. Havia coisas para serem arrumadas e organizadas. Maria também insistiu para que ficasse lá pelo menos até ao final do Verão, queria ficar com os amigos e poder aproveitar mais um pouco a quinta.
Por muito estranho que lhe parecesse, a morte da avó não lhe deixou nenhum buraco no coração. Ela amou-a da melhor forma que sabia e sentia que a avó continuava viva algures. Ela não conseguia acreditar que a vida acabava com a morte. Não depois do que testemunhou e viveu. Por isso confortou-se com as lembranças dos bons momentos e a esperança de que um dia a iria reencontrar.
Mesmo depois de ter partido, a avó Medina continuou a surpreender. Descobriram um Peugeot 206 preto dentro da garagem. Maria nunca se tinha dado conta que estava ali. Aquele era provavelmente o carro que a avó lhe ia oferecer. Mas por respeito ao falecimento da avó decidiu que só o guiaria quando terminasse o Verão, ou seja, quando fosse para a faculdade e fosse mesmo necessário.
Foi um Verão difícil para Leonor. Não podia trabalhar e não havia praia nas redondezas. Ainda foi alguns dias com Maria e os amigos dar uns banhos de sol para a ribeira. Mas não se atreveu a mergulhar, pois acreditava que podia ser mordida por uma cobra de água ou pisar um Lagostim sem querer.
Paulo ocupou a maioria do seu tempo com actividades de carpintaria. A casa precisava de ser pintada, mas acabou por sofrer melhorias em outros aspectos. Um ajuste no corrimão das escadas, a porta das traseiras chiava e foi mudada. A horta deixou de ser uma horta, embora Paulo se esforçasse para que esta continuasse a parecer-se com uma.
No fundo as férias desse Verão acabaram por ser de luto e uma recuperação do tempo perdido da relação pais/ filha.
Leonor conversava sempre entusiasticamente sobre Daniel a Maria. Ela quase que chorava quando a via com ele a conversarem ou simplesmente a saírem a qualquer lado. Ela dizia para Paulo que era porque lhe custava ver como a filha estava crescida. Paulo não lhe respondia, apenas sorria. Mas no fundo ele culpava-a por não terem passado mais tempo com a filha. Por outro lado, também sabia que não devia revolver num assunto tão delicado quanto esse, pois só iria trazer mais mal-estar à família.
No final do Verão. Quando Maria pareceu estar mais bem-disposta, Daniel tomou uma decisão. Em parte também influenciado por João. Sim. O João e o Daniel começaram a falar mais, embora ainda discutissem um bocado. Mas pode-se ver essas discussões como se fossem entre dois irmãos. Afinal eles conhecessem-se desde que se lembram dos começos das suas vidas. E o facto de saírem mais vezes, desde que o João começou a namorar com Tatiana e que têm mais saídas em grupo, também ajudou a que a relação entre eles deixasse de ser só discussões. Embora ainda permaneça uma forte competitividade entre os dois. Quer seja a pescar, a jogar dardos, matraquilhos, consola, o que quer que seja…
Mas, quanto à decisão de Daniel. Ele apercebeu-se de que se não aproveitasse para contar naqueles momentos os seus verdadeiros sentimentos por ela, poderia não ter outra oportunidade. Ele ainda não sabia se ficavam perto quando entrassem para a universidade. Por isso numa das últimas tardes das férias de Verão, ele convidou Maria para ir jantar a sua casa. Claro que Leonor deu logo permissão à filha, mesmo que Paulo não gostasse muito da ideia.
Maria ficou surpreendida por ver que ia jantar a sós com Daniel.
- A minha mãe hoje foi ajudar a Teresa lá a casa numas arrumações. – Ele justificou-se.
- Oh. – Maria seguiu para a cozinha, mesmo sem Daniel lhe dizer nada. – Então é melhor eu dar uma ajuda com o jantar.
- Não precisa. A minha mãe deixou praticamente tudo pronto. – Ele disse enquanto a seguia até a cozinha, coçando a cabeça envergonhadamente. Maria riu.
- Vais sentir saudades disso quando fores para a universidade! – Ela voltou-se para ele, num rodopio elegante.
- Vou sim. – Daniel foi para a sala e Maria seguiu-o. – Tens fome? – Maria olhou para ele, numa careta engraçada.
- Ainda não. Mas também é um bocado cedo para jantar. – Ela sorriu. – Quero dizer, ainda são seis da tarde.
- Tens razão. – Ele atirou-se para o sofá.
- Está tudo bem? – Maria sentou-se devagar a seu lado.
- Sim. Porque perguntas?
- Parece-me que estás um bocado nervoso…?
- Eu? Nervoso?
- Sim. Eu sei. Por isso deves estar a ver porque é que eu estou a achar isso estranho.
Daniel não riu, mas tentou parecer mais relaxado.
- Não me parece nervosismo. – Ele endireitou-se no sofá, virando-se de maneira a ficar mesmo de frente para Maria. Ela também rodou um pouco. E chegou-se para mais perto dele.
- Então conta lá o que é. – Ela sorriu simpaticamente. Ele sentiu-se vacilar com aquele sorriso. Prestes a perder a coragem para lhe contar o que tinha a contar.
- Bem… - Voltou a passar a mão pela cabeça, quase como se fosse coçar.
- Vá, diz lá. – Maria deu-lhe um toque na perna. Foi como um choque de adrenalina. O seu coração começou a bater mais rapidamente. E era-lhe difícil olhar nos olhos dela sem se sentir perdido e com vontade de desistir, com medo de que ela não o olhasse mais daquela maneira.
- Conto-te depois do jantar.
- Oh! Porque não dizes agora?
- Porque é um assunto delicado e não posso ser interrompido. – Maria riu. – O que foi?
- Um assunto delicado? – Ela riu com mais vontade. Só o riso dela fazia-o sorrir também.
- Dá-te graça que eu fale de assuntos delicados?
- Mais ou menos.
Os olhos dela eram a coisa mais bonita que ele podia alguma vez ter visto. A forma como se ria era tão suave, que parecia que ele estava num qualquer mundo dos sonhos em que nada podia correr mal. Os seus caracóis bem definidos caiam-lhe sobre o rosto prolongando-se pelos ombros e às vezes descaindo sobre o peito, quando numa qualquer altura ela não os puxava para as costas. Num movimento que parecia ser feito em câmara lenta. Uma imagem que o marcava e fazia sonhar de como seria tocar os seus cabelos. Mas para além do seu ar angelical, ela era inocente e não conhecia qualquer tipo de maldade nela. Mesmo que ela tivesse aqueles sonhos e vivido aqueles momentos diferentes, ela sempre lutara por aquilo que lhe parecia mais correcto e se por algum motivo o fizesse contra os seus princípios, a sua consciência assombrava-a por muito tempo. Ele queria poder estar a seu lado todos esses momentos. Ele sentia-se tão fraco a seu lado. Como se todo o seu coração pudesse ser amolecido e que acordasse para os sentimentos dela. Porque na verdade, nestes últimos tempos, quando ela está em sofrimento, ele está em sofrimento. Quando ela sorri, ele tem que sorrir. Quando ela está feliz, ele está nalgum tipo de paraíso. Era ela que o fazia ter medo, palpitações, ansiedade… era dela que ele queria estar ao lado.
Passaram o final da tarde a falar sobre diversas coisas. Na sua maioria coisas relacionadas com a Universidade. Expectativas e medos. Mas fez-se a hora de jantar e puseram a mesa.
Depois de terem posto a mesa, Daniel ainda pensou em colocar algumas velas, mas desistiu da ideia. Isso, provavelmente, só a iria assustar.
- Não há como negar. A tua mãe é uma excelente cozinheira. – Maria tinha acabado de comer o último pedaço de bife panado.
- Espero que tenha herdado o gene. – Maria riu. – Para sobremesa. – Daniel levantou-se e foi até à cozinha. – Tenho gelado de leito com chocolate e caramelo. E tenho … - Daniel remexia no congelador do frigorífico. – Gelado de frutos vermelhos.
- Pode ser o de chocolate. Onde tens as taças? – Maria levantou-se e foi em direcção ao armário da loiça.
- Na prateleira da direita, no meio.
Enquanto comiam o gelado. Maria voltou a tentar insistir na conversa que tinha ficado pendente.
- Já estamos quase acabar de jantar….já podias contar. – Ele sorriu, nervosamente.
- Ainda falta o quase…
- Vá lá. – Maria insistiu olhando-o nos olhos com ar pedinte. Daniel engoliu depressa demais um pedaço de gelado que tinha acabado de colocar na boca, sentindo-o descer até ao estômago. – Não vai haver interrupção. Podemos arrumar a loiça depois.
- Não! Deixa que eu depois arrumo.
- Discutimos isso depois. – Maria colocou na boca a colher com um pedaço de gelado. Daniel evitou olhar para ela. Mas encheu-se de coragem para lhe contar. – Agora conta lá o que se passa.
- Ok. – Colocou a sua tigela vazia de lado. Maria ainda continuava a comer o seu gelado. – Vai-me custar dizer-te isto. Até porque andei o ano todo para contar. E ainda um bocado do outro ano anterior.
- Eia! Vais-me contar um segredo? – Maria riu e colocou de lado a sua tigela, agora também vazia.
- Mais ou menos. Não é segredo nenhum. – Daniel levantou-se. – Vamos para a sala, é mais confortável. – E a sala de jantar era pequena, pelo que lhe dava a sensação de sufoco. E a pulsação acelerada também não ajudava.
Sentaram-se de novo no sofá em que tinha estado antes. Porém, Maria estava mais próxima dele que antes. Daniel olhou para ela e pensou:
“Mas que… acho que é mais fácil dar-lhe um beijo do que estar com conversa”.
Maria chegou para perto dele, curiosa sob o que ele lhe ia contar.
“É isso. Falo-lhe sobre os meus sentimentos depois … se for preciso.”
Daniel aproximou-se de Maria, como se lhe fosse contar um segredo muito baixinho. Mas ambos sentiram que não era isso que ia acontecer. A inclinação e a respiração acelerada eram indicadoras óbvias da grande onda de êxtase que passava por eles. Os seus rostos aproximaram-se lentamente, as suas respirações eram sentidas nos rostos um do outro.
Maria apertou as mãos que pendiam a seu lado. Ela sabia que todas as suas duvidas em relação aos sentimentos de Daniel iam agora ser-lhe esclarecidas. Ela pendeu sob ele, como se uma força magnética a puxasse, contra todos os seus pensamentos, que no momento estavam congelados e ela deixava-se levar pelo sentimento. Os olhos dela olhavam fixamente para os lábios de Daniel, levando a olhá-los como nunca antes. Pensando em como seria tocá-los, beijá-los…
Daniel sentiu que ela também se inclinava sob ele. Para além de sentir todos os seus pelos a eriçarem-se, ele estava hipnotizado pela beleza dela e também os seus olhos se prenderam á visão dos lábios de Maria. Carnudos e grossos. Tão bem desenhado, fazendo a sua boca tão apetecível. Sentiu como se fosse morrer naquele momento. Um sentimento tão diferente de todos os que sentiram alguma vez na sua vida. E mergulhou num beijo. Fechando os olhos e segurando o rosto de Maria com as duas mãos, para que ela não lhe pudesse escapar, naquele momento, que parecia tudo menos real.
Maria sentiu o choque. Mas era um choque agradável, muito agradável. Também ela fechou os olhos ao contacto. Quando sentiu as mãos de Daniel tocarem o seu rosto, ela esticou as suas em direcção à cintura dele. Sentindo-o chegar-se mais perto dela.
Sentiu tantas coisas ao mesmo tempo e nenhuma delas desagradável. Esqueceu tudo o que Tatiana lhe contara, todas as histórias de como seria se ela e Daniel namorassem. Esqueceu todas as tristezas e preocupações. Era só ela e ele. Parecia que estava a perder a respiração e o fôlego. Mas descobriu algo. Algo que lhe passara pela cabeça antes, mas que ainda não tinha certezas. Ela não gostava de Daniel. Ela tinha outro tipo de sentimento mais forte que nunca pensou poder ter por alguém. Ela amava-o com todo o seu coração. Pensou ainda se aguentaria tamanha felicidade que estava a sentir naquele momento. Tanto que as lágrimas lhe começaram a escorrer nos olhos
Daniel apercebeu-se da humidade que sentiu nas mãos. E o seu coração congelou. Acordando daquele estado quase hipnótico que entrara naqueles segundos. Largou o rosto de Maria e afastou o seu rosto. Maria permaneceu com os olhos cerrados. E ele pegou nas mãos dela, aflito ao ver as suas lágrimas.
- Maria desculpa! Eu não queria magoar-te! Eu só achei que seria a melhor forma de te mostrar o que sinto… Eu não encontrava as palavras certas para te explicar o que eu… - Daniel estava aflito e as palavras enrolavam-se um bocado. Mas acalmou-se quando ela abriu os olhos e sorriu para ele. Ela apenas sorria. Chegando mesmo a sentir-se como uma tontinha.
- Maria…? - Ele estava sério. Confuso. – Porque estavas a chorar? – Ela não lhe respondeu. Sorrindo como ele nunca a vira sorrir.
Ela aproximou-se dele e abraçou-o. Daniel acabou por sorrir também. Abraçando-a com ternura.
- Tu sabes que eu sou muito sentimental. Choro quando estou triste, enraivecida, feliz e … apaixonada! – Daniel não quis acreditar no que ouvia. Segurou-a nos ombros afastando-a de si. Sorrindo.
- A sério? – Maria acenou com a cabeça. Limpando as lágrimas. Daniel ajudou-a. Passando um dedo por debaixo das grossas pestanas escuras de Maria. – E eu que estava a morrer para te contar e que…
- E que o quê?
- Deixaste-me ansioso e com medo. Não sabia que reacção esperar de ti.
- Eu já desconfiava um bocado. Do que sentias por mim. – Maria encostou-se a Daniel. Colocando o rosto junto ao pescoço dele, olhando para as suas mãos entrelaçadas. – Eu também não sabia como ia reagir, até agora. – Daniel sorriu e beijou-lhe a testa.
- Isso quer dizer que nós…? – Ele começou por dizer.
- Sim. – Maria endireitou-se, olhando entusiasmada para ele. – A não ser que não queiras. – E olhou de novo para as mãos entrelaçadas. Daniel levantou-se e puxou-a para junto dele.
- É melhor irmos dar as novidades.
- Sim… - Maria saltou-lhe para os braços enquanto se dirigiam para a porta. Eles esqueceram-se por completo da loiça suja.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Toque da noite: XIX

“É difícil de descrever a sensação de ao acordar descobrirmos que estamos um ano mais velhos. Que muita coisa mudou e que uma nova etapa da nossa vida nos fez embarcar numa nova descoberta e exploração por aquilo que esperamos conseguir construir para um futuro estável e triunfante. Mas imaginem essa mesma situação, com o acrescento de que há uma condição desagradável para a qual não conseguem arranjar solução, ou se houver uma solução a desconhecem por completo.”

 

Em um ano as coisas mudaram. Maria tirou a carta de condução pouco tempo antes de a avó falecer. Foi, como se esperava, uma situação dolorosa, A avó Medina sofreu uma recaída no inicio do Verão, o que no fundo já todos esperavam, dado o seu estado fragilizado. Ela tinha estado muito doente, até deixara de cuidar da horta, pois mal se levantava da cama. Já tinha sofrido dois AVC’s e nem mesmo os médicos esperavam que se aguentasse tanto tempo.
Foi tudo relativamente recente, passou-se à coisa de três meses. Foi de manhã cedo. Maria tinha sentido medo quando foi ao quarto levar o pequeno-almoço à avó e a viu imóvel sob os lençóis. Ainda assim, agiu como se estivesse tentando contrariar o temor em que estava. Pousou o tabuleiro sobre a mesinha de cabeceira e sentou-se de lado na cama, chamando a avó suavemente, para que acordasse. Não tardou muito, já pegava nos seus ombros e a abanava numa tentativa inútil para a acordar. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, mas mesmo assim ligou para as urgências e a seguir para Daniel. Ele apareceu primeiro que a ambulância. E, surpreendentemente, João deu-lhe boleia até casa de Maria.
Maria abriu-lhes a porta mas caiu no chão assim que os viu. Ela sabia do estado da avó, mas mesmo assim parecia-lhe impossível que nunca mais a pudesse ver a sorrir ou sentir o calor dos seus abraços. Daniel pegou nela e colocou-a no sofá. João subiu até ao quarto, para confirmar se a senhora estava realmente morta. Mas antes que ele descesse as escadas, já a ambulância tinha chegado e os paramédicos corriam pelas escadas acima. Não houve absolutamente nada que pudessem fazer.
Daniel ficou a seu lado todo o tempo. Falou com os pais dela e avisou as pessoas mais próximas do sucedido. Acabou mesmo por ajudar em alguns preparativos para o funeral.
Todos os rostos conhecidos que estavam naquela igreja a olhavam desolados. Algumas senhoras de idade chegavam mesmo a abusar. Uma vizinha da avó Medina, que nem sequer falava com elas há já algum tempo, correu em direcção a Maria no velório com os braços abertos. Chorando e gritando.
- Mas que desgraça! Valha-me Deus! O que vai ser de ti? – E esmagou Maria nos seus grandes peitos. Daniel socorreu-a, juntamente com Paulo, o pai de Tatiana. Maria estava vazia, não reagia.
- Oh minha senhora. – Pediu com gentileza Paulo. – Não piore as coisas. – E acompanhou-a para fora da capela. – A senhora era o quê à minha falecida mãe? – A mulher olhou para ele, cessando as lágrimas.
- Ora essa! Eu sou a Cremilde, a vizinha da quinta Videira. Ela nunca falou de mim? – E olhou-o chocada. - Você já não se lembra de mim? – E nesse momento Paulo levou a senhora para a rua. Deixando-se de ouvir os seus diálogos dentro da capela.
Daniel voltou a sentar-se ao lado de Maria. Ela encostou a cabeça no seu ombro. Olhando para a figura imóvel da avó dentro do caixão. Enquanto Leonor, a sua mãe, lhe segurava uma das mãos. Tatiana, João, Tiago, Teresa, Chico e Filomena estavam sentados num banco logo atrás.
Foi o mais próximo que Maria conseguiu estar do que Teresa poderia ter sentido com a morte do marido e o desaparecimento do filho. Chico sofre com o excesso de protecção da mãe. Já passou o tempo de luto, mas ainda não pode ir a festinhas de anos dos amigos ou a qualquer tipo de local sem que a mãe esteja por perto. Filomena acreditava que isso iria passar, quando Teresa recuperasse a confiança e ultrapassasse o trauma. Embora muitos acreditem que ela já ficou marcada e que dificilmente voltará a ser a mulher que era.
A morte deixa sempre a sua marca.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Toque da noite: XVIII


“Não sei se será assim com toda a gente. Mas há momentos na minha vida em que me deparo com uma confusão tão profunda que deixo de ter noção do que fiz ou do que faço. É como uma tristeza muda e silenciosa a consumir toda a minha alma.
É-me muito difícil aceitar o que se passou. Não que não fosse algo a que estivesse já de certa maneira familiarizada. Mas porque desta vez eu tinha apoio e criara algumas expectativas em relação a isso. É daquelas vezes em que as forças me falham e só me apetece ficar fechada no quarto, dentro da minha cama, na escuridão, para fazer com que pareça que o tempo parou. Mas não me posso permitir a isso. Tenho a minha avó, que já sofre com toda esta minha situação e não quero aumentar a sua dor ainda mais. Ela não se zangou comigo quando lhe contei tudo. Ela não me disse nada. Apenas me abraçou e chorou comigo. Não a posso amar mais do que já amo, é impossível. Ela é a única que se esforça para me compreender e que fica a meu lado, independentemente daquilo que aconteça. Ou das minhas escolhas.Com ela não são necessárias palavras para exprimir e tentar dizer que o que sonho e se passou é verdade.
Sinto-me magoada pelo que Daniel me disse. Mas ele não tem culpa. Penso na nossa conversa e vejo o quão difícil deve ser estar na sua posição, embora a minha seja de longe a mais complicada. Ele tem todo o direito em não acreditar em mim. Afinal as evidências estão todas contra mim.
Ainda não consegui falar com a Tatiana. Ela deve estar a sentir o mesmo que Daniel. E provavelmente unir-se-á a ele quando ouvir a teoria dele.”

Maria acompanhou a avó até casa de Tatiana. A Dona Medina queria estar junto da família para ajudar no que fosse preciso. Eles também a apoiaram muito quando o marido morreu. Quando chegaram estavam todos na sala de estar, tal como se esperava num ambiente silencioso e pesado. Muito desconfortável.
Foi realizada uma busca pela criança, com cães para seguir um possível rasto. Mas como seria de esperar, não alcançaram nenhum o que deixou toda a gente confusa.
Tatiana parecia um tanto ansiosa quando viu Maria. Ela fez-lhe sinal para que se aproximasse.
- Está tudo bem? – Perguntou-lhe Maria.
- Não. – Ela fechou a porta da cozinha, para que pudesse falar mais à vontade. – Já chamei o Daniel para ver uma coisa. – Os olhos dela humedeceram-se.
- Para ver o quê?
- Desculpa, mas só vos mostro quando estiverem os dois juntos. – Ela limpou as lágrimas.
- Aconteceu mais alguma coisa? – Maria aproximou-se e abraçou-a.
- Sim… – Tatiana soluçou. – Aconteceu o que de certa forma se esperava. – A campainha tocou. Tatiana limpou os olhos e tentou recompor-se. Saíram as duas para a sala. Daniel olhou-as interrogativamente. E seguiram os três para o quarto de Tiago. Visto que não podiam entrar no quarto onde tudo tinha acontecido. Ninguém na sala esteve atento o suficiente para achar aquele encontro estranho. A avó Medina abraçava a mãe dos gémeos. Enquanto o resto das pessoas fixavam o vazio, pensativamente.
- Sentem-se. – Pediu Tatiana enquanto colocava um CD no computador. – Vão precisar quando virem isto.
Maria não sabia o que se passava, mas acreditava que nada podia ser pior. Daniel olhou para ela e de seguida para Tatiana que se sentou junto a eles. Um vídeo começou a passar. Era o quarto de Tatiana, num ângulo que dava para ver todo o quarto. Maria levantou-se, mas não fez mais que isso. Toda a cena que se passou na noite anterior repetiu-se naquele computador. Cada momento de terror, desespero e sofrimento passou pelos olhos dos três. Tatiana voltou a chorar, mas silenciosamente. Daniel tinha a boca aberta, com as sobrancelhas contraídas. Num misto de surpresa e choque. Maria estava calma, embora cada imagem fosse como uma bofetada na sua cara.
O filme parou com Tatiana a dirigir-se para junto da câmara que filmou tudo. Daniel olhou para Maria, desta vez com total choque na sua cara. Tatiana retirou o CD do computador. Voltando para o lugar onde estava sentada. Maria encarou Daniel.
- Não sei o que dizer… – Disse Daniel.
- Talvez que agora já acreditas que é real. – Disse Maria calmamente. Enquanto isso, Tatiana chorava e Maria colocou um braço em seu redor.
- O que terá acontecido ao Alex…? – Tatiana olhou para os amigos. Ficaram silenciosos. Daniel agarrou na mão de Tatiana. – E que raio era aquela coisa? Que até a câmara de filmar captou…. – Daniel ficou calado, Maria abanou a cabeça. Os três ficaram a olhar para o computador desligado.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Toque da noite: XVII

A manhã não melhorou. Todos estavam tensos. Teresa estava num estado difícil de descrever. Parecia apática a tudo o que a rodeava. Não respondia a nenhuma questão se não lhe tocassem ou a obrigassem a olhar directamente para alguém. Maria ficou ao lado de Chico, o outro gémeo, tomando conta dele. Daniel ficou com ela, mesmo que ela não lhe tenha dirigido palavra desde a sua ultima conversa. A criança estava confusa, não percebia porque é que um homem que ele não conhecia de lado nenhum, lhe tinha feito perguntas sobre onde estava o irmão. Tal como nós ele disse que não sabia, que o irmão estava junto deles e que desaparecera sem ninguém se aperceber.

- Maria?
- Sim querido? – O menino olhou para ela, muito sério.
- Onde achas que o meu mano está? – Foi a primeira vez que Maria lançou um olhar a Daniel, um pedido de ajuda, mas ainda assim um olhar.
- Sabes aquela vontade que às vezes nos dá de ir brincar para um sitio diferente, onde ninguém nos possa encontrar? – Francisco ficou a olhar para ele, pensativo, mas acabou por abanar a cabeça.
- Não. – Respondeu. Daniel não se deixou atrapalhar.
- Às vezes temos essa vontade. Nos adultos acontece mais vezes. Mas o Alex pode ter-se lembrado de ir brincar para a rua, sem dizer nada a ninguém.
- Mas ele não ia. – Disse Chico. – Ele nunca disse a ninguém a não ser a mim. Mas ele tem muito medo do escuro.
- Pode ter ido para a entrada. Sabes que a luz do candeeiro da rua ilumina tudo lá. – Ele não pareceu muito convencido com a explicação de Daniel e continuou com as perguntas.
- Mas se foi brincar para a rua porque é que desapareceu? – Maria e Daniel ficaram em silêncio por segundos. – Acham que foi o papão? – Daniel teria rido se não fosse uma situação daquelas. Porque até ele, chegou mesmo a pensar que poderia ter sido uma espécie de papão. A mãe de Tatiana apareceu.
- Chico vem ao pé da tua mãe. Ela quer que venhas tomar o pequeno-almoço com ela. – O menino levantou-se e foi em direcção à porta. – Venham também.
- Obrigada senhora Filomena, mas eu vou tomar o pequeno-almoço com a minha avó. Esta noite acabamos por não dormir nada e acho que vou aproveitar para descansar um pouco agora de manhã. – Enquanto falava Maria levantava-se.
- Vai querida. Vão os dois. Vocês precisam de descansar e já ajudaram muito. A Tatiana deixou-se de dormir no sofá, já está a descansar um pouco. Se houver novidades eu ligo-vos.
- Até logo senhora Filomena. – Disse Daniel.
- Esperem lá. – Daniel e Maria viraram-se para Filomena. – Depois de uma coisa desta eu não vou deixar que vás a pé sozinha para casa. Mesmo que lhe faças companhia. – Disse apontado para Daniel. – Acabas por ter que vir tu sozinho.
- Não é… - Começou Daniel. Mas Filomena já estava a chamar João. – Importas-te de levar a Maria até casa?
- De maneira nenhuma. – João desceu as escadas e foi até ela.
- Vê se voltas a tempo do pequeno-almoço. – E Filomena foi para dentro de casa.
- Depois de um desaparecimento fazias contas de ir para casa sozinha? – Disse João. – Corajosa.
- Eu ia com ela. – Daniel disse. – Até logo! – Despediu-se mais para Maria do que para João.
- Até logo vizinho! – Disse João em tom desafiador. – De certeza que não queres boleia até casa? – Daniel continuou a caminhar, sem responder.
- Tu também tens que estar sempre a meter-te com ele. – Observou Maria.
- Acho que é um sentimento recíproco. Ele também passa a vida a meter-se comigo. – João abriu a porta a Maria, num acto cavalheiresco. Faceta que ela desconhecia.
- Mas tu és mais velho. Não devias ser tu a dar o braço a torcer?
- Nah. Estamos bem assim. É mais saudável. – Maria não percebeu, mas também não fez mais perguntas. -Como é que o puto desapareceu debaixo dos narizes deles sem se aperceberem?
- Como? – Maria olhou para João.
- Tu não estavas lá. Mas não achas esta história estranha?
- Sim. Um bocado.
- Acho que há ali falta de qualquer coisa. Está ali algo mal contado.
- Achas que eles estão a mentir?
- Não…
- Então qual é a teoria?
- Não sei, mas como é que alguém anda num quarto sem chamar a atenção de pelo menos uma das três pessoas que estão a mais no quarto. – Maria já via a casa da avó. – E ainda por cima estavam dispostos em triângulo, certo?
- Como assim?
- A Tatiana e o Chico estavam sentados na cama. O Daniel em frente à cama, quase por detrás da televisão, num dos puffs. Parte-se de um princípio que todos os lados do quarto eram visíveis pelo menos a uma pessoa. Como é que não se deram conta, ao menos, de uma criança a pôr-se de pé?
- Não te esqueças que o Daniel estava a jogar consola. O que requer muita concentração…
- Tens razão. Mas não deixa de ser estranho. – Parou o carro mesmo em frente da entrada.
- Andas a ver muito CSI. Essas teorias nem parecem tuas.
- Eu sou muito mais inteligente do que pensas. – Ela saiu do carro.
- Obrigado pela boleia!
- De nada. – Maria não fechou a porta de casa até ter a certeza de que João já tinha passado os portões.
Agora vinha a parte mais difícil. Contar à sua avó o que se tinha passado.

Toque da noite: XVI


O relógio marcava agora uma da manhã. Uma mãe chorosa era incapaz de falar com as autoridades. Tatiana e Daniel contaram que num momento estavam a ver o filme e no outro a criança tinha desaparecido. O gémeo, não dizia nada, confuso e ensonado estava abraçado à tia. Maria manteve a mesma história que Tatiana e Daniel, tentando encenar uma súbita amnésia.

- Não tem mais nada a acrescentar que possa ter alguma relevância sobre o paradeiro do rapaz? – Perguntou um homem gordo e atarracado, mexendo um espesso bigode por cada palavra que pronunciava.
- Não. – Disse Maria, com os braços cruzados.
- Muito bem. – O homem anotou qualquer coisa no bloco de notas. – Está dispensada. – Virou-lhe as costas e dirigiu-se para um colega que observava a varanda do quarto onde tudo se passara.
Daniel estava ao lado de Tatiana, tentando confortá-la. Mas uma visão ao longe fê-lo distanciar-se. João apareceu do meio da rua, com cara de quem tinha estado nos copos com os amigos. Tentando acompanhar o passo apressado de Tiago. Tatiana correu para os braços de João assim que o avistou e contou tudo ao irmão e a ele.
- Ele está podre de bêbado! - Resmungou Daniel quando chegou perto de Maria.
- Tu não te lembras mesmo de nada? – Disse Maria num sussurro, aproximando-se de Daniel.
- Não. – Daniel ficou meio atordoado com o cheiro do seu perfume, com a proximidade dela. – Mas lembrar do quê? – Maria ficou agitada.
- Não posso contar aqui. – Ela olhou em redor, para os vários agentes que investigavam o local e faziam questões aos vizinhos e moradores da casa. E começou a afastar-se.
- Maria…? – Daniel foi atrás dela. A curiosidade tinha-o possuído, bem como a preocupação.
- Eu não posso ir para casa agora. Ia acordar a minha avó e… não estou preparada para lhe contar o que se passou. – Daniel caminhou ao lado dela, ouvindo-a. - Vai ser uma noite longa. – Maria encostou-se a um poste da luz. Longe da confusão da casa, inclinou a cabeça ligeiramente para trás. Daniel ficou a olhá-la. Maria parecia tensa, parecia estar demasiado enrijecida. Tinha os olhos fechados, mas as mãos tremiam, bem como a sua mandíbula.
- Maria? – Daniel aproximou-se dela. Ela não respondeu. – Maria? – Ele chamou-a mais alto, e agarrou-lhe os braços. Ela estava a escorregar pelo poste, como se subitamente tivesse ficado sem força nas pernas. – Diz-me o que se passa.
- Eu não sei se vou aguentar por muito mais. – Maria disse numa voz vazia, como se estivesse a pensar alto. Daniel baixou-se e sentou-se atrás dela, também encostado ao poste. Daniel não lhe disse nada. Várias possibilidades lhe passavam pela cabeça, na tentativa de dar resposta ao que acabara de “testemunhar”.
- Ele desapareceu tal como previste, mas nós não vimos nenhum vulto, nenhuma sombra. Os sacos de rosmaninho e canela estavam no mesmo sítio, tudo parecia normal. – Daniel falou numa voz calma. Estava verdadeiramente convencido que o miúdo tinha saído por vontade própria. Ele tinha estado distraído com a sua PSP, Maria estava na rua, Tatiana e o outro gémeo estavam atentos aos desenhos animados. O miúdo podia ter passado por eles sem se aperceberem. Só repararam no seu desaparecimento quando Maria regressou e abriu a porta.
- Exacto, parecia tudo demasiado calmo. – Maria enrolou o cabelo com a mão e prendeu-o por baixo do gorro do casaco que vestia. – Eu… - Daniel esperou por uma continuação. – Eu vi tudo. – Fez-se um silêncio. – Eu vi aquela coisa nojenta a entrar no quarto…Eu… - Virou-se para Daniel. Ele não lhe dizia nada. – Deves achar que eu me passei de vez. – Maria levantou-se. – Mas eu estive frente a frente aquilo. Tal como tu e a Tatiana… E não sei como. O tempo pareceu andar para trás e vocês esqueceram-se de tudo o que viram.
- Eu não acho que estejas maluca. Eu só acho que devias ter mais cuidado.
- Uhm?
- Maria nós estivemos todos no quarto, não saímos uma única vez depois de teres ido apanhar ar. Não vimos nada entrar. O que tu dizes não faz muito sentido para mim…– Maria expirou com força.
- Na verdade os factos estão todos contra mim… - Ela olhou-o com olhos apelativos. – Eu sei que é difícil acreditar.
- Sim. E devias ter mais cuidado, evitar estar sozinha quando te sentes num momento desses…de maior tensão. – Daniel tentava ser delicado com a forma como lhe dizia as coisas. Ele sabia que não podia prolongar muito mais a aparência de acreditar que tudo o que Maria lhe contava se passava realmente.
- Pensas que estas coisas que eu tenho. Estes sonhos que me falam de pessoas que vão desaparecer, e acabam por desaparecer mesmo, são fruto de momentos de tensão? – Daniel acenou com a cabeça. Os olhos de Maria humedeceram-se. – Onde é que eu tinha a cabeça ao pensar que tu ias acreditar em mim? – Disse, sentindo-se vencida. – É difícil de acreditar, mesmo eu questionar-me-ia senão tivesse tanta certeza do que vi.
- Mas eu acredito em ti… Acredito que para ti isto seja real, acredito que tu acreditas que aquilo que me contaste se passou mesmo. – Daniel aproximou-me mais dela. – Só acho que na verdade não o é. E que precisas que alguém te ajude a compreender isso.
- E esse alguém és tu? – Ela sentiu o sarcasmo na sua voz e sentiu a cabeça às voltas. Era uma noite cheia de experiencias em excesso. Na noite em que o avô desapareceu, ela lidou com a situação da melhor maneira que pode. Mas sempre contou com o apoio das amigas. Agora, com este desaparecimento, em que ela tinha alimentado expectativas de que podia haver uma hipótese, embora remota, de impedir que isso acontecesse, ela deparava-se com um amigo céptico. Que lhe revelava, agora, naquele momento em que ela precisava de apoio, que não acreditava que aquilo que ela contava pudesse acontecer na realidade.
- Maria, tens que ser compreensiva. Não é uma situação em que…
- Eu sei. Eu sei que estou mais sozinha que nunca. Quando somos incompreendidos, a solidão que provem disso é muito mais insuportável… – Os olhos estavam lavados em lágrimas. Tentava desembaraçar-se do toque de Daniel. Alguns soluços começavam a ouvir-se.
- Eu estou a ser compreensivo na medida do razoável… – A sua voz era agora um pouco mais receosa, tensa. Ele tentou tocar-lhe novamente, um toque de conforto. Mas Maria deu um esticão ao braço, para que ele não lhe tocasse.
- Eu estou farta disto. Todos estes anos tive que levar com esta porcaria. Tive que levar com a frieza da minha mãe, com a sua ignorância. Porque ela acreditava que eu estava possuída. – O tom de voz estava ao aumentar. Daniel olhou em redor. Era uma e meia da manhã, a maioria das pessoas estava mais preocupada com a GNR perto da casa de Tatiana do que com o que eles estavam a falar. Ou simplesmente dormiam. – O meu pai acabou por me enviar para um sítio, o mais longe possível, para que não o fizesse passar vergonhas. As pessoas que eu avisava do que se ia passar gozavam comigo. E quando desaparecia o ente querido de que eu avisei que ia desaparecer, acusavam-me, consideravam-me suspeita ou uma bruxa. E eu simplesmente calava-me, tentava ser “compreensiva” para com as suas perspectivas. – Maria fez um gesto de aspas com os dedos, quando se referiu a compreensiva. – Porque poderia pensar que alguém ia ser mais compreensivo agora? Se após estes anos todos, a compreensão não esteve do meu lado. – Daniel achou melhor ficar calado. – Até as minhas amigas que me dizem compreender, no fundo me temem… – Maria limpou as lágrimas. – É melhor voltarmos. - Virou-lhe as costas e foi para casa de Tatiana. Daniel seguiu-a mas não lhe disse mais nada durante o resto da noite.

Demorei um bocado a postar porque tenho tido uns problemas no pc, mas já está tudo resolvido. =D

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Toque da noite: XV

O vento fresco soprava de mansinho. E os gémeos brincavam no quintal com carros telecomandados, que sabe-se lá como, Tatiana lembrou-se de lhes oferecer. Fazendo com o cenário tivesse cada vez mais similaridades com o sonho de Maria, deixando-a em sobressalto.
Tiago dava toques numa bola de futebol, numa espécie de competição com João.
- Tu não me digas que convidaste o teu namoradinho. – Resmungou Daniel para Tatiana.
- Mas que parvo! – Ela fez-se parecer aborrecida. – Vocês deviam deixar essas parvoíces de infância para trás. – A expressão de Daniel endureceu. – Não, ele tinha umas coisas combinadas com os amigos. O Tiago também vai com eles. – Ela ficou preocupada. – Vamos ter que ficar sozinhos. – A bola de futebol escapou até junto de Maria. Ela chutou-a de volta para Tiago. João mandou uma piada qualquer sobre miúdas a chutar bolas, mas ela ignorou por completo. Tiago riu com vontade e Daniel não pode conter um pequeno sorriso.
- Ainda os tentei convencer a ficar, mas parecia que estava a ficar desesperada… - Chegou-se mais perto de Maria e Daniel. Sussurrando. - … e não quis falar do assunto. Quero dizer. Ia passar por louca e assim quanto menos gente estiver, menos perigoso será.
- É. Não sabemos quão perigoso isto vai ser. – Maria sentou-se numa cadeira que estava junto à porta que dava acesso ao quintal.
Começou a ficar tarde. Tiago e João foram para o seu encontro de amigos. Tatiana levou os gémeos para cima, para começar a maratona de filmes animados. Teresa continuava com um aspecto fragilizado, cansado e deitou-se logo. Dando as boas noites aos filhos com um beijo na testa a cada um e um até amanhã sumido ao resto do grupo.


Tatiana e os gémeos riam que nem uns perdidos envoltos na magia dos filmes da Disney. Contudo, Tatiana estava numa luta interna violenta para se manter animada para as crianças. Tentando esquecer a situação e focar-se nos filmes.
Maria e Daniel estavam sentados perto da varanda. Ele jogava na PSP, relaxado e encostado no puff, movendo-se extasiadamente consoante o nível que ultrapassava no jogo. E ela ficava atenta às cortinas corridas, alertando-se com qualquer ruído que pudesse ser exterior ao filme. Estava um ambiente leve, parecia que só ela se preocupava com tudo o que poderia acontecer.
Maria olhou para o relógio, eram onze horas e quarenta e sete minutos. Ela sentia que estava muito perto do limiar de perder a calma, mas lembrava-se dos gémeos e não queria que eles ficassem assustados, principalmente porque era a primeira vez que os via rir com vontade depois do acidente.
Subitamente, Maria deu um pulo no seu puff, uma batida forte fê-la quebrar o seu raciocínio. Repetiu-se ao fim de alguns segundos. Mais ninguém pareceu notar.
- Não ouviste nada? – Perguntou a Daniel, dando-lhe um toque no braço. De novo se fez ouvir a batida.
- Para além dos risos deles e dos efeitos sonoros do filme?
- Sim! – Maria estava de pé. Captando a atenção de Tatiana, que foi ter com ela. A batida ouviu-se com mais intensidade.
- Ok. Se te estavas a referir a isto, agora ouvi. – Daniel pôs-se de pé.
- O que foi? – Perguntou Tatiana. A batida repetiu-se.
- Ouvis-te? – Tatiana acenou.
- O que fazemos? – Perguntou, ficando um pouco agitada.
- Mantém-te calma para começar. Não deve ser nada de mais. – Disse Daniel.
- Vai para perto dos gémeos. – Disse Maria. – Fica atenta a algum sinal que façamos.
Maria pegou numa raquete de ténis que estava junto à varanda. A batida repetia-se num espaço de segundos. Era alta e pesada, a cada som dela o seu coração parecia desequilibrar-se, embora batesse freneticamente. Daniel pegou na outra raquete, impossivelmente calmo, na perspectiva de Maria. Era necessário, alguém manter a calma, para pensar mais correctamente. Pensou. Espreitou por entre as persianas. A noite estava escura, ela só conseguia ver as sombras da noite submersas na luz amarelada dos candeeiros da rua. O quintal estava vazio, as árvores agitavam-se calmamente com o vento. As batidas pareciam não aumentar de volume. Ela esforçou a vista para tentar ver na escuridão da noite, que engolia toda a paisagem traseira do quintal. Quando sentiu uma mão no ombro, fazendo com que saltasse em sobressalto e soltasse um leve grito. Ridículo, se não fosse naquela situação. Daniel riu.
- Eu sei de onde vêm as batidas. – Disse em tom de gozo. – Vem cá. – Tatiana e os gémeos olhavam para Maria. Os gémeos pareciam divertidos com a cara assustada de Maria. Tatiana estava apreensiva e muito atenta a qualquer sinal. Foram à casa de banho. Da janela era visível a casa do vizinho. Uma mulher agitava um cobertor de inverno, da varanda da sua casa.
- Quem é que se lembra de fazer isso de noite? – Resmungou Maria. – Ainda nem está frio para usar aquilo!
– Daniel estava divertido. – Escusas de estar a gozar comigo. Eu não tenho o dom de manter a calma como tu.
Voltaram a sentar-se nos puffs. Maria fez sinal a Tatiana de que estava tudo bem. Ela respirou fundo e com dificuldade voltou a adoptar o papel de prima divertida.
Maria voltou a olhar para o relógio, eram agora onze horas e cinquenta e cinco minutos. Abraçou as suas pernas sentindo-se muito tensa. Daniel não voltou a pegar na PSP, colocou um braço em redor dela, tentando confortá-la. Ela segurou com uma das mãos, a mão de Daniel.
O tempo arrastava-se, lento como uma lesma. Maria estava paciente, embora se sentisse um pouco intimidada ao sentir a proximidade de Daniel. Eles eram amigos a algum tempo, mas nunca tinham estado assim. Sentados em puffs, meio que abraçados um ao outro por tanto tempo.
- Eu vou lá fora um pouquinho, preciso de apanhar ar. – Disse Maria enquanto se levantava e desembaraçava do braço de Daniel, de forma calma.
- Estás bem? – Ele sussurrou.
- Só um pouco nervosa. Já passa. - Ela estava assustada com o que poderia encontrar nessa noite, mas a ansiedade possuía agora de tal maneira que parecia adivinhar algo ruim. Daniel quis ir com ela, mas ela recusou a sua companhia, argumentando que era muito mais importante a presença dele junto aos gémeos.
Lá fora, um vento suave e abafado dançava por entre as árvores. O espanta espíritos tocava uma leve melodia com o bater dos ferrinhos. O seu cabelo encaracolado esvoaçou e ela semi-cerrou os olhos, tentando revelar o que as sombras da noite escondiam. Olhou o céu, algumas nuvens escondiam a bonita cúpula estrelada, mas a Lua mantinha-se visível, num fraco banhar de luz. Maria voltou a olhar o relógio, faltava exactamente um minuto para a meia-noite. Ela sentou-se num dos bancos do quintal, continuando atenta a qualquer movimento invulgar.
Ao fim de uns segundos o vento cessou. Maria endireitou-se no banco. Ao longe, os cães da vizinhança pararam de ladrar. A luz dos candeeiros pareceu perder um pouco da intensidade. Olhou para a varanda que dava para o quarto onde Daniel, Tatiana e os gémeos se encontravam. Tudo parecia estranhamente calmo. Maria voltou a sentir o peso do medo. Olhou em todas as direcções do quintal, não esquecendo o céu. No alto, as nuvens começaram a movimentar-se ferozmente, como empurradas por uma forte ventania que não chegava ao solo. A Lua ora estava escondida, ora estava à mostra.
Maria levantou-se, com a intenção de avisar os amigos de que o momento estava a chegar. Ela sentia-o. Mas antes que o pudesse fazer, os temíveis sussurros que ouvira em sonhos, voltaram. Um mar de sussurros que a fez congelar.
- Tu já sabes porque. – A voz grossa, calma e distante atravessou, por meio de um sussurro, um pouco mais audível que os outros.
- Não! – Maria disse, fraca e ainda congelada pelo medo. As nuvens agitavam-se agora circularmente no céu. O vento voltou. Desta vez com mais intensidade. Como se tivesse sido lançado desde o céu para o centro do quintal. O cabelo de Maria balançou sintonizadamente com o monte de poeira que se levantou do chão. Ela olhou para cima. Daniel estava agora de pé, olhando atonitamente através da janela. Maria acenou-lhe com a cabeça. Daniel voltou a focar-se na grande nuvem de pó que rodava, como um pequeno tornado que nascia a partir do chão. Folhas secas misturavam-se-lhe. A roupa que estava presa na corda, ameaçava soltar-se a qualquer momento.
- Um menino pequenino. Sem poder escapar. Vai ouvir o meu sino. Quando eu acabar de cantar. – Cantou a voz, sarcasticamente no seu tom negro e grosso. Maria voltou a olhar para a varanda, onde uma sombra descia na direcção desta. Ela gesticulou o máximo que conseguiu para captar a atenção de Daniel. Mas ele continuava a olhar para o remoinho.
- Ah! – Gritou frustrada. E correu para dentro de casa, em direcção ao quarto. Quando chegou à porta do quarto, não a conseguiu abrir. Bateu então com força.
- Tatiana! Daniel! Ele está junto à varanda. – Não obteve resposta. Apenas ouvia os sussurros e a voz grossa cantando a mesma estrofe sem parar. Tentou entrar no quarto dos pais de Tatiana. A porta também estava trancada. Gritou por eles, mas da mesma maneira não obteve resposta. Voltou para a rua. O remoinho parecia ter aumentado de intensidade, tornando a visibilidade difícil. Maria voltou-se para a varanda. Pode ver Daniel na frente do vulto, de boca aberta e com uma expressão horrorizada. As portas da varanda estavam escancaradas e era visível que o vento assolava o quarto de Tatiana. Maria pegou no saquinho com a mistura de rosmaninho e canela que tinha no bolso. Olhou em volta e com dificuldade conseguiu distinguir uma escada no outro lado do quintal. Correu na sua direcção e carregou-a até junto da parede, com bastante dificuldade. O vento parecia ter estabilizado na sua intensidade. A sombra tinha entrado completamente no quarto de Tatiana. Maria encostou a escada e subiu. Aquela estrofe era irritante e não ajudava nada com os nervos.
- Daniel usa os sacos! – Maria gritou quando entrou no quarto. Mas Daniel e Tatiana já tinham os sacos, alguns deles rotos por terem trespassado aquela sombra. Tatiana estava em frente dos gémeos, numa posição protectora, maternal. Os gémeos encolhiam-se atrás dela, chorando, abraçados um ao outro. Daniel ia dando um passo atrás cada vez que a sombra se aproximava dos gémeos, chegando a encostar-se a Tatiana, que também chorava.
- Pára!! – Gritou Maria para a sombra. O vulto moveu-se virando-se de frente para ela. Não havia um rosto, era uma enorme massa negra de forma humanóide. A sua voz grossa ficou em silêncio por segundos. Os sussurros cessaram.
- Um menino pequenino. Sem poder escapar. Vai ouvir o meu sino. Quando eu acabar de cantar. – Disse numa voz sonora, quase cavernosa, grossa e um pouco roca. Ao terminar a estrofe os sinos da igreja tocaram, marcando a meia-noite. Um rosto começou a formar-se na massa negra. Maria sentia que as suas pernas iriam ceder a qualquer momento. Uns olhos, um nariz e uma racha de boca formavam-se, até que se pode distinguir um rosto. A massa negra tinha adoptado uma face familiar. A de Maria.
- Há coisas com as quais temos de viver. Esta vai ser uma dessas coisas para ti. – Aquela voz grossa, que de maneira nenhuma podia ser associada a um rosto tão angelical, pareceu ainda mais maligna que das outras vezes. – Daniel tentava escapar com as crianças, enquanto a criatura estava de costas para ele. Maria tentou ganhar mais tempo para que eles conseguissem escapar.
- Porque é que me fazes isto? – Gritou Maria, para que pudesse ser ouvida por cima do zumbido do vento. – Porque me mostras as pessoas que vais matar? – O rosto daquela estranha que estava na sua frente, pareceu divertido. – Porquê? – A sombra não lhe respondeu, moveu-se suavemente em direcção a Daniel. A porta continuava trancada e eles não tinham conseguido sair. Tatiana ia correr em direcção aos gémeos.
- Hora de dormir. – Disse a voz grossa. Tatiana levitou no ar. Impulsionada por uma força invisível, como se fosse um boneco muito leve. Foi deitada na sua cama, posicionada na sua forma de dormir mais comum e pareceu desmaiar.
- Tati… - Maria sussurrou. A sombra voltara a ser uma massa negra, desfazendo o rosto clone dela. Daniel de braços abertos estava na frente dos gémeos. Mas, tal como Tatiana, foi impulsionado, num voo estranho e rápido, para junto de Maria. Ela agarrou-o antes que caísse no chão. Ele parecia incapaz de se manter em pé, apesar de estar consciente.
- Maria…eu não me consigo mexer. – Maria teve que desistir e encostá-lo a um puff. Daniel era demasiado pesado para ela aguentar. Maria não conseguiu responder. Olhou na direcção dos gémeos. Eles mantinham a cabeça baixa, abraçados e chorando. Ela foi em direcção a eles. Metendo-se entre a sombra e os gémeos.
- Não podes fazer nada… - Sussurrou a sombra. Maria ignorou e colocou-se na frente dos gémeos. Ela sentiu um frio rodeá-la, à medida que a sombra se aproximava. O medo estava agora estagnado, porque a preocupação de Maria pelos gémeos era superior. Daniel assistia a tudo, semideitado no puff, frustrado pela sua incapacidade de se mover, por estar a assistir aquilo e não poder fazer nada.
- MARIA!!! – Gritou enraivecido.
A sombra cobriu Maria e os gémeos. Maria pode sentir dois bracinhos quentes rodearem-lhe as ancas. E num segundo um desses braços desapareceu, tal como o frio. A escuridão que arrebatara a sua visão uns segundos antes desaparecera. Como se tivesse sido sugada pela janela. Um dos gémeos permanecia de pé, junto à porta, com um braço em redor da anca de Maria e o outro no ar, que caiu levemente. O rosto assustado da criança olhou em redor. Maria observou o quarto, a sombra tinha desaparecido. Sentiu uma sensação de formigueiro por todo o corpo. E à frente dos seus olhos pode ver uma mudança brusca de cenário. Estava agora no quintal, olhando para o céu. As nuvens estavam imóveis. O vento continuava a soprar levemente. A luz dos candeeiros da rua tinha agora a mesma intensidade. Maria olhou para a varanda, não estava lá ninguém.
- Mas que…? – Maria correu para o quarto de Tatiana. Conseguiu abrir a porta e entrar. Estavam todos nos lugares em que se encontravam quando tinha abandonado o quarto para ir apanhar ar, excepto um.
- Mano? – Perguntou um gémeo, que estava sentado na cama ao lado de Tatiana. – Para onde foi ele?
- Oh não! – Tatiana pulou na cama. – Maria?
- Não conseguimos. – Disse ela com os olhos cheios de lágrimas. – O rosmaninho e a canela não chegaram.
- Mas como? – Perguntou Daniel, aproximando-se de Maria. – Nós não vimos nem sentimos nada.
- Ele estava agora mesmo aqui ao meu lado! – Gritou Tatiana com as mãos na cabeça, entrando em histeria.
- Vocês não se lembram? – Perguntou Maria, olhando para Daniel, Tatiana e o gémeo.
- Lembrar o quê? – Perguntou Daniel. Maria não respondeu, olhando chocada para os amigos. – Eu vou ver se o Alex está na casa de banho.
- Prima? – Chamou o gémeo. – O que se passa?
- Não está na casa de banho. – Disse Daniel.
O sino da igreja ressoou por toda a aldeia, penetrando naquele quarto, tal como antes. Maria olhou para o relógio, marcava meia-noite em ponto.