sábado, 31 de outubro de 2009

Quando um homem desespera

O vento soprava de forma intensa lá fora. Os cortinados dançavam agitadamente projectando sombras assustadoras na parede. As janelas batiam, num som ensurdecedor. Marco levantou-se para as fechar. Tinha que comprar fechaduras novas, aquelas já não aguentavam o vento. Foi buscar dois cabos de vassouras e colocou-os de forma que a janela não voltasse a abrir. Respirou fundo e voltou para a sua cama. Abraçou a sua mulher, que estava muito enroscada nos cobertores, e assim se deixou de dormir, envolto no calor dela.
De manhã o vento estava mais calmo. Abriu os olhos por causa de alguns raios de sol que se escapuliam por entre os cortinados rotos. Estava sozinho na cama, abraçado à sua almofada. Piscou os olhos, como se não estivesse a ver bem, mas depressa se consciencializou de que estava mesmo sozinho. Foi até à cozinha, encheu a chávena de café, pegou num bocado de pão do dia anterior, barrou com um pouco de margarina e comeu.
- Nem penses que eu vou voltar. Estou farta da tua preguiça, da tua estupidez e da tua frieza. Desta vez não é um aviso. Sou eu a ir mesmo embora. – A mulher arrumava nas duas malas, todas as suas roupas e bens. – Cansei-me de esperar. Tu fazes sempre a mesma coisa. Dizes que tudo vai mudar para melhor, mas no dia seguinte voltas à mesma. – O homem estava encostado à parede sem dizer uma única palavra, sem qualquer expressão de incómodo na cara. Até parecia que estava tudo bem, ele tinha um leve sorriso na cara, meio sumido, mas que dava para notar. – Marco. Tu estás a ouvir-me? – Disse a mulher, com grossas lágrimas a correr-lhe pelo rosto.
- Estou querida. – Desta vez Marco esboçou um grande sorriso na cara. – Fazes como quiseres. – Ela expirou com desgosto. Pegou nas malas e saiu pela porta do quarto. Ele nem se mexeu, manteve-se encostado à parede a olhar para a porta. Ela voltou atrás, entrando no quarto e atirando com qualquer coisa para cima dele.
- Toma a porcaria das chaves! Não vou precisar mais delas! – Ficou por um momento a olhar para ele. Chocada com a sua falta de reacção. E saiu. Dessa vez para sempre.
Esta lembrança era-lhe muito dolorosa. Ele gostava mesmo dela. Ela era a única pessoa com quem ele realmente falava e queria proteger.
Acabou de comer e foi até ao telefone. Tinha várias mensagens guardadas, da sua mãe, do patrão, mas nenhuma dela. Ele pegou no casaco e no maço de cigarros e saiu. Aquela casa já não era o que era. Agora causava-lhe dor.
Desceu pela rua. Estava pouco movimentada devido à hora da manhã. Ele acendeu um cigarro e fumou enquanto caminhava sem rumo. Uma chuva fininha começou a cair, mas ele ignorou.
Ao fim de um bocado ele sentiu a cabeça à roda, os olhos ardiam-lhe e ouviu um zumbido demasiado forte. Teve que se por de joelhos, largando o cigarro no meio do chão e levando as mãos aos ouvidos.
- Não! Outra vez não! – Gritou. – Seu sacana!
Acabou por cair de costas no chão gelado, rebolando com as mãos nos ouvidos. Até que perdeu a consciência.
- Está bem? – Sentiu um toque no ombro. – Senhor. Está-me a ouvir? – O toque pareceu um pouco mais forte.
Marco sentou-se.
- Estou óptimo, obrigado. – Disse com um sorriso nos lábios. – Foi só uma ligeira baixa de tensão. – O rapaz que estava à sua frente ajudou a levantar-se. Marco olhou em volta mas não viu ninguém. – O que estás a fazer sozinho na rua a esta hora?
- Vou para a escola. Tenho que ir a pé porque não tenho dinheiro para o autocarro. E como é longe tenho que ir cedo. – O rapaz era afinal uma criança. Daquelas que são muito altas e parecem mais velhas. Marco levou a mão ao bolso, mas estava vazio.
- Não trouxe a minha carteira. – Então olhou nos olhos do rapaz. – Mas, de qualquer das maneiras esse exercício faz-te muito bem. Obrigada pela ajuda. – E Marco afastou-se.
Quando perdeu o rapaz de vista, Marco ouviu os gritos dele. Gritos aflitos e de dor. Durante uns minutos os gritos ecoaram pela rua de forma intensa até que cessaram por completo. Marco sorriu de forma mais intensa, bem-disposto e aproximou-se da montra mais próxima, olhando para o seu reflexo.
- Ainda não superaste a perda da tua namoradinha? – Ele olhou com uma expressão divertida para o seu reflexo. – É melhor superares depressa. És um homem, não um rato. Deixa-te de todo esse sentimentalismo idiota. – Ficou a encarar o seu reflexo por um tempo. – Se não fosse eu, tu não eras nada. – Marco sentiu uma guinada na cabeça. – Isso não me afecta. Tu és apenas….qual é mesmo a palavra adequada?... Ah, já sei….Tu és apenas um homem fraco. – Marco riu com vontade e continuou o seu caminho.
Nessa tarde, quando a noite já estava a chegar. Marco acordou em casa. Levou as mãos à cabeça, ao ter um vislumbre de reflexos mentais do que tinha feito durante o dia. Levantou-se, pegou no casaco e voltou a sair. Uma revolta atordoante envolvia-o numa fúria. Bateu a porta com força quando saiu. Ele tinha que falar com alguém. Ele tinha que contar o que se estava a passar. Então ocorreu-lhe um local que ele não visitava há anos.
Entrou pela comprida porta de madeira. Os seus passos ecoaram por todo lado. Ao longe, milhares de velas estavam acesas em frente aos vários altares com figuras de Nossa Senhora de Fátima e S. José. Uma enorme cruz, estava no altar central, com uma imagem sangrenta de Jesus Cristo pregado. Uma mulher saiu do confessionário, agachando-se e benzendo-se ao passar em frente de um outro altar secundário. Marco foi em direcção ao confessionário, entrou e sentou-se no banco ligeiramente almofadado. Um padre com uma voz profunda e de alguém com já alguma idade falou algo sobre pecados e purificação da alma. Marco respirou fundo.
- Perdoe-me padre que eu tenho pecado.
- Estás aqui para poderes confessar os teus pecados, meu filho.
- Já faz muito tempo que não entro numa igreja.
- Deus recebe sempre de braços abertos os arrependidos e perdoa-lhes. – Marco ficou em silêncio. – Confessa os teus pecados para que ele te possa perdoar.
- Padre, eu tenho enganado muita gente. Eu sou duas pessoas diferentes.
- Como assim meu filho?
- Padre, eu sou eu mesmo neste momento, mas há dias em que eu não tenho controlo nas minhas acções. Eu fico horrorizado com as acções desse meu outro. Eu falo comigo mesmo e tenho noção do meu outro eu. Mas não o consigo controlar.
- O que te faz pensar que és duas pessoas diferentes e não tu num dia mau?
- Padre, as coisas que o meu outro eu faz são demasiado horríveis para que fosse eu a fazê-las.
- O que é que o teu outro eu faz?
- Magoa seriamente as pessoas. Afasta-me daqueles que amo. Mancha o meu nome através das minhas mãos. Denigre a minha vista com actos horrendos.
- Meu filho. Reza com muita força. Eu rezarei por ti, hoje mesmo e daqui para a frente. Mas o que faz o teu eu de tão horrendo?
- Ele, ele… – Marco sentiu-se quase a contar tudo. Mas era demasiado tenebroso contar aquilo tudo. Por isso levantou-se e correu para fora da igreja. Não podia viver mais naquele inferno, naquela prisão estúpida. Mas ai voltou a sentir a cabeça à roda, os joelhos a arderem-lhe e a ouvir o forte zumbido. Caiu no chão. Mas levantou-se como se nada fosse ao fim de segundos.
- Oh. Estavas a querer acabar com a diversão? – Marco caminhou em direcção à ponte. Que era visível em frente da igreja. – É verdade que já me começas a aborrecer. Sempre deprimido e idiota. Mas só me vou descartar de ti depois de esticar o pernil. – Continuava falando sozinho. Uma mulher que passou por ele olhou-o. – Sim, querida. Enlouqueci e estou a falar sozinho. Estava a pensar como seria espetar um punhal no teu peito. – A mulher ficou chocada e começou a correr. – Podes correr. Mas seu eu quisesse apanhava-te. – Gritou Marco, enquanto a mulher escorregava numa possa de água enquanto corria. – Mulheres. Pensam sempre que podem vir a correr mais do que um homem. – Marco meteu a mão no bolso e tirou um cigarro, que acendeu calmamente e deu uma passa. – Olha. Vou dar-te um presentinho. Visto que estás a pensar atirares-te da ponte, vamos brincar um bocadinho.
No outro dia de manhã. O padre que ouviu a confissão de Marco, estava a pensar numa maneira de o ajudar. Ele reconheceu a voz de Marco. Era filho de uma das mulheres mais devotas da igreja. Desde os treze anos que não aparecia naquela igreja. Era filho de gente boa e modesta, mas definitivamente algo não estava bem. O padre ligou a televisão e reconheceu a fotografia de Marco no canto do televisor.
- Oh meu deus! – Disse em choque, sentando-se numa cadeira.
- No início da noite de ontem, perto da ponte Cristóvão Albuquerque, foram assassinadas cerca de doze pessoas. Um homem de 27 anos, Marco Santana, enlouqueceu de um momento para o outro e foi apunhalando pessoas até chegar ao centro da ponte, de onde se atirou de cabeça. Acabando por morrer. Dizem as testemunhas que ele foi apunhalando aleatoriamente, conseguindo esquivar-se de todos os que o tentaram impedir. E foi confirmado que a arma do crime foi a mesma que foi utilizada em mais outros cinco assassinatos misteriosos que ocorreram na zona. Tendo assim, marco Santana matado cerca de dezassete pessoas de que se tenha conhecimento até à data. Passo agora á jornalista Fátima Bagulho que está no local onde foram feitas as vitimas…
- Oh meu Deus! – O padre benzeu-se. E correu para o telefone. – Estou? Irmã? Tenho de lhe contar uma coisa. Eu ontem recebi um homem que se foi confessar e que eu desconfiei que podia estar a sofrer de possessões. Eu não fiz nada em relação a isso, decidi esperar por hoje. E agora ele está morto. Veja nas notícias. É o Marco Santana.








3 comentários:

  1. Gxtei do teu conto. TÁ BRUTAL!!
    Xcrevst-o msm no dia d Halloween?
    Bj.

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  2. Obrigada!
    Eu escrevi este conto na semana anterior.
    :)

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  3. Concordo! Brutal!Não tinha tido tempo de ler....Mil perdões!
    mas está mto mto mto bom!
    bjks
    ╬♥╬

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