terça-feira, 24 de novembro de 2009

Toque da noite: VIII

A Lua tinha acabado de nascer na noite. Um vento fraco acariciava o espanta espíritos que estava pendurado junto à porta das traseiras. Os gémeos, filhos do senhor Manuel, brincavam com expressões sérias, com os seus carros telecomandados no quintal da casa de Tatiana. A luz forte que iluminava todo o quintal provinha de uma lâmpada que estava por cima da porta. Era uma luz clara que contrastavam com o tom amarelado dos candeeiros da rua.
Um vulto do outro lado da cerca que limitava o quintal mexia-se vagarosamente. Escuro como a noite camuflava-se na perfeição. Os gémeos não o notaram, continuavam a sua corrida de carros. Ele parecia apenas mais uma sombra na noite. Maria sentiu um arrepio nas costas e disse aos gémeos para voltarem para casa. Mas parecia que eles não tinham ouvido. Teresa apareceu junto à porta.

- Está na hora de se irem deitar.
- Oh mãe! Já? – Resmungou um deles, sem tirar os olhos do seu carro.
- Deixa-nos acabar a corrida. – O outro levantou os olhos e fixou-a. – Por favor?
- Ok. Só mais cinco minutos e depois vão lavar os dentes. – Teresa voltou a entrar em casa. O vulto moveu-se novamente. Maria voltou a pedir aos gémeos que fossem para casa. Mas nenhum deles reagiu à sua presença. Ela tentou ver quem era o vulto, mas a escuridão venceu-a. Ela não conseguiu distinguir mais nada a não ser os contornos do que parecia ser um individuo corpulento, provavelmente um homem.
- Queres saber porquê? – Uma voz grossa disse num sussurro. Calma e distante, a voz parecia desvanecer-se ao terminar a pergunta. Os olhos de Maria esbugalharam-se e o seu coração batia selvaticamente no peito. Era o vulto que tinha falado. E de repente, um conjunto de sussurros imperceptíveis, de diferentes vozes, se juntara. Os mesmos sussurros que a assombraram antes, a mesma voz familiar. Em sonhos que premeditavam um desaparecimento e possivelmente uma morte.
- Queres saber porquê? – Repetiu aquela voz. Tão calmamente como antes. Maria sentiu lágrimas a escorrerem no seu rosto. Num choro silencioso, ela fixou os gémeos, que inocentemente brincavam com os seus carros, possivelmente esquecidos da desgraça que recentemente se abateu sobre a sua família.
- Eles são apenas duas crianças. Não os leves a eles. – Maria soluçou. O vulto permanecia num movimento suave, em torno da vedação. Imperceptível para quem não permanecesse algum tempo a olhar na sua direcção.
- Queres saber porquê? – Repetiu, no mesmo tom, e desvanecendo-se da mesma maneira. Maria engoliu em seco, sabendo que não podia fazer nada a não ser responder.
- Sim. – O vulto aproximou-se de Maria, envolvendo-a numa escuridão, mais profunda do que a noite. Mas nem assim, conseguiu distinguir uma forma do vulto. Quando voltou a ver luz, era uma manhã. Ela estava sentada num carro familiar, no meio dos dois gémeos, no banco de trás. Manuel ia no lugar do condutor e Teresa ao seu lado. Falavam animadamente sobre uma surpresa que iam oferecer a Tatiana no dia de anos dela.
- Ela vai adorar. Já falei com a coordenadora e tudo. Os pais deram permissão. E ela pode levar duas pessoas como companhia. – Disse Teresa. Depois virou-se ligeiramente para trás. – Meninos, isto não é para contar à vossa prima. Vai ser uma surpresa para ela.
- Está bem! – Disse um dos gémeos.
- Nós não vamos contar. – Completou o outro gémeo. Eles brincavam com os bonecos miniaturas de heróis de acção. Maria sentia pequenas correntes frias, quando os gémeos metiam as mãos dentro dela. Ela era como um fantasma naquele cenário. Um medo percorreu-lhe o sentido. Era óbvio o que ia presenciar naquele momento. Manuel guiava pacientemente e estava numa conversa calma e animada com a mulher. Os gémeos brincavam, mas não faziam nenhum barulho que pudesse distrair Manuel e a sua condução. Como é que o acidente podia ter ocorrido? A estrada tinha sido arranjada recentemente, com uma nova camada de alcatrão. Maria ficou atenta no caminho.
Mas, de um momento para o outro, um grande cão de guarda correu para a estrada. Ao aperceber-se Manuel tentou desviar-se e acabou por sair da estrada. Derrapou com a travagem repentina e um enorme sobreiro pareceu aproximar-se do carro. Manuel tentou desviar o carro para a direita, mas era tarde de mais. Maria fechou os olhos e colocou os braços em frente da cabeça num reflexo. Um grande estrondo soou, todos os corpos foram impulsionados para a frente. Maria nunca tinha tido um acidente de viação, ela estava congelada com o terror e a forma como cada imagem que passava na sua frente parecia ser em câmara lenta. Quando voltou a abrir os olhos, o grande sobreiro tinha amolgado quase na totalidade o carro do lado do condutor, Manuel parecia quase esmagado no assento, com a face encostada ao encosto do acento comprimido pelo volante. Teresa estava desmaiada ao seu lado, um fio de sangue escorria desde a testa até à boca, uma das pernas tinha desaparecido no emaranhado de metal. Maria olhou para o lado para ver os gémeos. Um deles, o que estava por detrás do banco do condutor, estava encolhido no assento, com as pernas junto ao peito, parecia ter-se safado do aperto que o banco da frente estava a fazer contra o de trás. Mantinha os olhos fechados e estava a chorar freneticamente. O outro gémeo, também parecia ter desmaiado. Tinha um ferimento no lábio, parecia ter-se mordido com o impulso da travagem. Maria olhou para ela, estava intacta, aparentemente. Tentou tocar no gémeo que chorava, mas foi-lhe impossível, a mão com que lhe queria tocar, atravessou-o.
- Mãe! Mano! Pai! – O gémeo que estava consciente gritava. Ninguém lhe respondeu. Ele, banhado de lágrimas, tacteou pelo assento e pegou no que parecia ser uma pequena bolsa. Tirou de dentro um telemóvel e ligou para alguém. – Avó! – Ele gritou no que pareceu ao mesmo tempo ser um choro. Ouviu-se uma voz alarmada do outro lado. – Tivemos um acidente! Acho que estão todos mortos! – O rapaz chorou ao telemóvel. Ficou a chorar por um bocado. Ele tentou abrir a porta, puxando e empurrando, mas ela nem se moveu. – Despacha-te avó! Eu não consigo abrir a porta.
O miúdo continuou a chorar, e de quando em quando ele chamava pela família, dando um toque no irmão que nem se mexia. Passado algum tempo chegou ajuda. Conseguiram retirar os gémeos sem dificuldade, um deles ainda se mantinha inconsciente. Pouco depois também conseguiram tirar a mãe deles, também ainda inconsciente. Maria assistiu a tudo, lavada em lágrimas e aterrorizada com aquelas imagens. Ela ficou paralisada no lugar do carro.
- É por isso. – Ouviu aquela voz novamente. Os sussurros começaram a encher a sua cabeça, o som das conversas dos que estavam a socorrer começaram a diminuir. Viu-se novamente junto à vedação que limitava o quintal. Ao lado do vulto, observando os dois miúdos a brincar. – Ele viu o cão a correr em direcção à estrada muito antes do condutor. E não disse nada. – Sussurrou a voz. – Assistiu à sua morte e saiu totalmente ileso. – Maria contorceu o rosto com horror e tentou visualizar o vulto. Tentou detectar uma cara. – É por isso. – Voltou a sussurrar a voz.
- Mas é uma criança. Tem apenas 10 anos, ele não podia adivinhar que isso ia acontecer. – Maria gritava de raiva. Teresa voltou a aparecer.
- Já passaram mais de cinco minutos. Já são dez horas e um quarto. Cama, já! – Teresa não estava chateada, o brilho que ela costumava ter quando falava tinha desaparecido todo. Agora era mais uma voz monótona, com expressão apática que comandava os filhos.
Os gémeos foram buscar cada um o seu carro. E Maria viu o vulto elevar-se no ar, sob o céu estrelado. Maria gritou.
- Não! Não faça isso! Ele é só uma criança! – O vulto ignorou os gritos de Maria. O coração dela batia com muita força, quase que lhe doía o peito. Sentiu um formigueiro nas pernas, as mãos a tremerem e num instante ela estava na sua cama.
- Oh não. – Maria disse para consigo, numa voz controlada. Estava toda transpirada, e sentia a pressão no peito, das batidas frenéticas do seu coração. Ela foi até à casa de banho lavar a cara. Foi até ao quarto da avó, mas esta dormia que nem uma rocha. O único movimento visível, era o movimento respiratório, o peito subia e descia, por baixo dos lençóis. Maria voltou para o quarto, eram quatro horas da manhã. Sentou-se na cama e apenas chorou.

3 comentários:

  1. TAO BELO TEXTO, me sinto triste em ainda nao ter encontrado este blog para te-lo lido antes...

    Me torno Seguidor Hoje! :D

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  2. Mell Dells!É melancólico, mas preende a tenção de uma maneira descomunal!Você só quer beber, letra por letra e se alimentar das palavras!Esta mto mto mto bom!!!!!!!!!!
    Continue sempre assim e estaremos aqui para ler*-*
    Bjkz, de sua leitora

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  3. Boas!
    Luna é a primeira vez que exploro este blog. Devo dizer que me atrai bastante esta parte do Toque da Noite. Não tive tempo para ler o resto, mas vou definitivamente.

    Bj

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