quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Toque da noite: XIV

À tarde, Maria despediu-se dos pais. Eles estavam só à espera que ela chegasse para partirem mais descansados.
A avó Medina estava mal disposta, passou grande parte do tempo a queixar-se de que Leonor não era uma boa esposa para o filho.
- Já viste como o teu pai está? Parece doente e aquela gordura toda não é nada bom sinal. – Dizia enquanto lavava a loiça.
- Não exagere avó. – Maria enxaguava e colocava-a no escorredor da loiça.
- Uhm? – Pausou a sua tarefa, encarando Maria. - Mas qual exagero? Se ele vivesse comigo ia ficar à dieta de hortaliças, migas e carne de porco. Ias a ver enquanto não recuperava a forma. – A avó Medina acreditava piamente que uma dieta saudável devia ser baseada em hortaliças e carne de porco. Os enchidos foram-lhe proibidos pelo médico, mas ela argumenta que os médicos só têm os saberes da cidade, que os saberes do campo ficaram reservados para as pessoas do campo. E ainda hoje, Tatiana vai a dar com ela a lanchar pão com toucinho ou farinheira.
- Avó os toucinhos e as farinheiras não são consideradas alimentos saudáveis. São até bastante parecidos com as comidas de plástico que o pai anda a comer. – Maria foi pegar no pano da loiça para começar a limpar alguns talheres.
- Não digas tolices rapariga! – A avó Medina pôs a mão na anca. – Tu não te deixes influenciar por tudo o que os outros te dizem! Senão estás desgraçadinha da vida. – Maria não lhe respondeu. – Ouve o que te digo que não vou durar sempre.
- Eu sei avó. Mas também não podemos ser tão bicudas e não ouvir o que os outros nos têm para dizer. – A avó Medina retomou a sua tarefa.
- Mas olha, há muitas curas que não se fazem só pelo que os médicos dizem. Mas também pela força e fé da própria pessoa. – A avó olhou para ela. – Como seria se um médico te dissesse que não podias comer chocolate?
- É, talvez eu deixasse de comer. – A avó Medina riu.
- Não acredito nisso. Só vendo.
A noite caiu. Maria jantou com a avó e levantou a mesa no final. A avó Medina não se importou que ela fosse para casa de Tatiana, ajudar a tomar conta dos gémeos.
- Ai, vocês. Não vos percebo. Porque é que preferem ficar acordados à noite para ver porcarias, quando as podem ver de dia? – Comentou a avó.
- Compramos hoje muitos filmes. Eles estão entusiasmados e à noite têm dificuldade em dormir. Assim vai ser um estímulo para que se cansem e durmam melhor depois da sessão de filmes.
- Se vocês acham. – A avó bocejou. – A tua mãe cansa-me mesmo. Ela não consegue parar de falar, deve ter um problema qualquer na língua. – Maria riu. – Vou-me deitar. Vê se trancas a porta quando saíres.
- Ok avó. Até amanhã! – A avó deu-lhe um beijo de boas noites.
- Aquele garoto, o Daniel vem-te buscar?
- Sim.
- Eu não gosto que andes por ai sozinha à noite.
- Esteja descansada avó.
Maria pode ouvir a avó a arrastar-se pelas escadas até ao andar de cima. Daniel disse que passava por lá às dez e meia, por isso devia estar a chegar.
Maria sentou-se no sofá, enquanto esperava. Ela sabia que o amigo devia ter enfrentado grandes dilemas internos, só não sabia que ainda os estava a ter. Porém hoje ficou com a certeza disso. A médium deu a entender e a atitude de resposta que o Daniel teve só o recriminaram mais.
- Como me vais poder ajudar numa coisa que nem tu próprio acreditas? – Sussurrou levemente enquanto pensava. Foi surpreendida por uma batida na porta. Pegou no casaco e foi abrir.
- Boa noite! – Cumprimentou-a Daniel.
- Olá. – Maria fechou a porta e guardou as chaves no bolso. – Preparado?
- Sim. – Respondeu Daniel, sem grande entusiasmo.
Caminharam em silêncio por um bocado. Um silêncio incómodo. Maria não sabia se devia tocar no assunto da médium ou no facto de ele estar numa de evitar olhar ou falar com ela. Por outro lado, Daniel não queria falar do que se iria passar porque não estava muito crente de que se ia passar realmente alguma coisa.
- O céu hoje não está tão claro como costuma estar. – Comentou Maria, numa voz calma. Daniel olhou para o céu, fazendo com que o gorro do casaco que tinha sob a cabeça descaísse um pouco.
- É. – Não olhou para Maria.
- Mas o que é que se passa contigo? – Maria colocou-se na frente dele, impedindo-o de continuar a andar. Era certo que foi meio inesperado o repente com que Maria perguntou aquilo. Daniel foi obrigado a olhar para ela, um bocado surpreendido.
- O que se passa como? – Perguntou indiferente, olhando em redor e para o chão.
- Tens estado a tarde toda a evitar falar comigo. Não és capaz de me olhar nos olhos. E agora estás nervoso por causa de eu te estar a fazer frente. – Maria estava a desesperar. A tensão de ir enfrentar algo desconhecido, juntava-se com a tensão de que o amigo pudesse estar zangado com ela por algum motivo que ela não sabia. Daniel ficou em silêncio.
- Não me queres dizer? – Maria perguntou, agarrando-lhe os braços. Num esforço para que ele olhasse para ela.
- Maria…eu não quero falar disto agora. Hoje temos muita coisa em que pensar e…não é o melhor momento. – Daniel tentou olhar para ela, mas tinha que desviar o olhar por alguns segundos. Era demasiado. Ter que olhar-lhe nos olhos sem lhe poder dizer o que realmente sentia por ela. E hoje estava incomodado, não porque ia passar a noite em casa de Tatiana a ver desenhos animados, mas porque uma estranha lhe tinha dito um segredo que ele nunca contara a ninguém. Um segredo que apenas a mãe dele desconfiava.
- Mas é melhor dizeres-me. – Daniel passou ao lado dela e continuou a caminhar. Maria seguiu-o. - Eu não aguento o teu silêncio. – Os olhos de Maria humedeceram-se perante a atitude gélida dele.
- Vá lá! Não é nada de mais. – Daniel não se apercebeu de que Maria estava a chorar.
- Foi alguma coisa que eu fiz? – A voz de Maria estava a começar a falhar. Daniel voltou-se para ela, abanando a cabeça.
- Tu não fizeste nada. – Em parte. Pensou Daniel. Parando na frente dela. Boa. Já a puseste a chora! Pensou, revoltado. – Maria… - Ele aproximou-se dela, tentando olhar aqueles olhos castanhos e tristes. Que eram como um feitiço lançado sobre ele. Impedindo-o de a ignorar, de se render aos seus encantos. Acabou por abraça-la. Sentiu os perfeitos e perfumados caracóis dela baterem-lhe suavemente no rosto.
- Diz-me porque estás zangado comigo. – Pediu-lhe, numa voz mais controlada.
- Eu não estou zangado contigo. – Daniel afastou-se para poder olhá-la. – Estou zangado comigo. – Ela era tão bonita.
- E porque é que não eras capaz de me olhar quando falava contigo?
- Porque és o motivo pelo qual eu estou zangado comigo.
- Não percebo.
- Maria, tu és uma das pessoas mais importantes da minha vida. Tenho-te como uma pessoa sincera e verdadeiramente bondosa. E acredito na tua história, nas tuas visões… Mas mesmo assim, tenho as minhas dúvidas, o meu cepticismo… Eu acabo por me ver dividido entre dois lados. E como teu amigo eu não devia estar dividido. Tu devias ser a minha primeira escolha, sem qualquer dúvida. – Maria limpou os olhos com o dorso da mão, agora com um sorriso luminoso. Que só dava vontade a Daniel de a abraçar, de a fazer sorrir mais vezes. – Sinto-me mal ao olhar para ti porque é como se já não tivesse esse direito.
- Tu consegues surpreender-me sempre. – Disse Maria com um grande sorriso. – Pregas-me sustos deste e depois… acabas por me dizer coisas bonitas e exageradas. – Maria agarrou o braço de Daniel e puxou-o para que continuassem o caminho. – Estás ao meu lado. Lutando contra todas essas oposições que nascem dentro de ti. Tens mais do que o direito de olhar para mim. Tu tens o direito de me contar essas coisas. Somos amigos e é esse tipo de coisas que nos atormentam que devemos contar um ao outro. – Daniel olhou para ela, um meio sorriso surgiu-lhe no rosto. – Eu sobrecarrego-te com estas coisas que vão contra o teu cepticismo. Tu tens a obrigação de me contar as tuas coisas. Sobrecarrega-me! – Um sorriso torto acabou por se fazer notar na sua face. – E devias dar-me mais desses sorrisos tortos que eu tanto gosto. – Maria e Daniel pararam em frente da casa de Tatiana. – Especialmente em momentos como este. – Daniel desfez o sorriso, pensando na possibilidade que de facto algo ia acontecer nessa noite.

1 comentário:

  1. Ah!Que crueldade!!!!Eu quero mais!
    Ta ficando tão, mas tão legal!Você é ralmente genial em suspense!Apaixonei-me por essa história!
    Estarei esperando por mais...
    Até breve...Bjkz

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