segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Toque da noite: XIX

“É difícil de descrever a sensação de ao acordar descobrirmos que estamos um ano mais velhos. Que muita coisa mudou e que uma nova etapa da nossa vida nos fez embarcar numa nova descoberta e exploração por aquilo que esperamos conseguir construir para um futuro estável e triunfante. Mas imaginem essa mesma situação, com o acrescento de que há uma condição desagradável para a qual não conseguem arranjar solução, ou se houver uma solução a desconhecem por completo.”

 

Em um ano as coisas mudaram. Maria tirou a carta de condução pouco tempo antes de a avó falecer. Foi, como se esperava, uma situação dolorosa, A avó Medina sofreu uma recaída no inicio do Verão, o que no fundo já todos esperavam, dado o seu estado fragilizado. Ela tinha estado muito doente, até deixara de cuidar da horta, pois mal se levantava da cama. Já tinha sofrido dois AVC’s e nem mesmo os médicos esperavam que se aguentasse tanto tempo.
Foi tudo relativamente recente, passou-se à coisa de três meses. Foi de manhã cedo. Maria tinha sentido medo quando foi ao quarto levar o pequeno-almoço à avó e a viu imóvel sob os lençóis. Ainda assim, agiu como se estivesse tentando contrariar o temor em que estava. Pousou o tabuleiro sobre a mesinha de cabeceira e sentou-se de lado na cama, chamando a avó suavemente, para que acordasse. Não tardou muito, já pegava nos seus ombros e a abanava numa tentativa inútil para a acordar. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, mas mesmo assim ligou para as urgências e a seguir para Daniel. Ele apareceu primeiro que a ambulância. E, surpreendentemente, João deu-lhe boleia até casa de Maria.
Maria abriu-lhes a porta mas caiu no chão assim que os viu. Ela sabia do estado da avó, mas mesmo assim parecia-lhe impossível que nunca mais a pudesse ver a sorrir ou sentir o calor dos seus abraços. Daniel pegou nela e colocou-a no sofá. João subiu até ao quarto, para confirmar se a senhora estava realmente morta. Mas antes que ele descesse as escadas, já a ambulância tinha chegado e os paramédicos corriam pelas escadas acima. Não houve absolutamente nada que pudessem fazer.
Daniel ficou a seu lado todo o tempo. Falou com os pais dela e avisou as pessoas mais próximas do sucedido. Acabou mesmo por ajudar em alguns preparativos para o funeral.
Todos os rostos conhecidos que estavam naquela igreja a olhavam desolados. Algumas senhoras de idade chegavam mesmo a abusar. Uma vizinha da avó Medina, que nem sequer falava com elas há já algum tempo, correu em direcção a Maria no velório com os braços abertos. Chorando e gritando.
- Mas que desgraça! Valha-me Deus! O que vai ser de ti? – E esmagou Maria nos seus grandes peitos. Daniel socorreu-a, juntamente com Paulo, o pai de Tatiana. Maria estava vazia, não reagia.
- Oh minha senhora. – Pediu com gentileza Paulo. – Não piore as coisas. – E acompanhou-a para fora da capela. – A senhora era o quê à minha falecida mãe? – A mulher olhou para ele, cessando as lágrimas.
- Ora essa! Eu sou a Cremilde, a vizinha da quinta Videira. Ela nunca falou de mim? – E olhou-o chocada. - Você já não se lembra de mim? – E nesse momento Paulo levou a senhora para a rua. Deixando-se de ouvir os seus diálogos dentro da capela.
Daniel voltou a sentar-se ao lado de Maria. Ela encostou a cabeça no seu ombro. Olhando para a figura imóvel da avó dentro do caixão. Enquanto Leonor, a sua mãe, lhe segurava uma das mãos. Tatiana, João, Tiago, Teresa, Chico e Filomena estavam sentados num banco logo atrás.
Foi o mais próximo que Maria conseguiu estar do que Teresa poderia ter sentido com a morte do marido e o desaparecimento do filho. Chico sofre com o excesso de protecção da mãe. Já passou o tempo de luto, mas ainda não pode ir a festinhas de anos dos amigos ou a qualquer tipo de local sem que a mãe esteja por perto. Filomena acreditava que isso iria passar, quando Teresa recuperasse a confiança e ultrapassasse o trauma. Embora muitos acreditem que ela já ficou marcada e que dificilmente voltará a ser a mulher que era.
A morte deixa sempre a sua marca.

2 comentários:

  1. Verdade...A morte é uma marca que não pode ser vista e que só quem a tem entende...Um simbolo de sofrimento....
    Você, como já disse muitas vezes, transmite as idéias de local e sentimento mutio bem!O texto ficou ótimo!Estou curiosa para saber o que ess choque afrá com eles...Até breve
    bjkz
    ╬♥╬

    ResponderEliminar
  2. A morte...o derradeiro mistério que todos dariam um pouco de si para saber os segredos que ela oculta...
    Ou simplesmente o fim. O fim de toda a actividade biológica...

    Estou curioso pelo final...desta história.
    bj

    ResponderEliminar