- Mãe, nós vamos até ao parque. Os miúdos querem ir andar de baloiço. Nós voltamos à hora do jantar. – Uma mulher disse junto à porta Para uma outra mulher já de idade, que estava sentada numa cadeira de rodas. Esta não lhe respondeu, manteve-se quieta, olhando para a janela. Ouviu-se a porta fechar e um pouco mais tarde a porta da rua do andar de baixo também bateu. A idosa moveu a sua cadeira de rodas, de modo a ter uma boa visibilidade da rua. Duas crianças corriam de um lado para o outro, mas sempre perto da mãe. Iam-se afastandom na rua, engolidas pelo arvoredo que se erguia, moldando a longa rua, escondedno o caminho a quem quisesse observá-lo.
O olhar triste da idosa era demasiado profundo. Ela respirava com dificuldade e tinha a mão pousada sob o peito. Voltou a deslocar a cadeira de rodas e parou em frente a um grande espelho antigo. Ficou por uns tempos, imóvel, a mirar-se. Absorta em todo o seu reflexo, perdida no desgosto do que observava. Desfeita de toda a esperança que mantivera enquanto jovem, da beleza eterna.
Cada ruga era uma prova dos muitos anos que lhe pesavam, testemunhas duma vida experiente e quase esgotada.. Os olhos, que outrora tinham sido de um castanho avelã, muito vivos, tinham agora pequenas manchas azuladas, esbranquiçadas. Necessitavam de uns óculos de lentes grossas para ver alguma coisa. Uma lágrima caiu. E a senhora fechou os olhos. Desviou a cadeira de rodas e voltou para o mesmo sítio onde estava anteriormente.
Alguém bateu na porta com um pouco de força, a mulher de idade também já não tinha uma audição boa. Mas embora tenha ouvido a batida, ela não se mexeu, nem respondeu. Um homem com cerca de quarenta anos entrou.
- Olhe, chegou um embrulho para si há bocado. – Ele aproximou-se da senhora. – Parece ser um presente. – O homem sorriu. A velhota girou levemente o pescoço e ficou a encarar o presente, surpresa. Estava embrulhado num papel de mercearia, como se fazia antigamente. – Não o quer abrir? – Perguntou meigamente o homem, enquanto o colocava no colo da velhota. Ela com as mãos trémulas desmanchou o nó simples do laçarote e desdobrou a folha que envolvia uma caixa pequena. O homem pegou nos restos de papel.
- Vou deitar isto para o lixo. – A velhota abriu a caixa e um cartão caiu. – Eu já o apanho. Se quiser também lho posso ler. – O homem saiu do quarto. A velhota olhou para dentro da caixinha, lá dentro estava um pequeno frasco conta-gotas. O homem voltou a entrar no quarto.
- Ora vamos lá ler este cartão. – A velhota encarou-o, meio que ansiosa por saber o que lá estava escrito. – Para a minha querida Lucy. A qual nunca esqueci. Aqui está o que lhe prometi há muitos anos atrás. Com muito carinho Elisabete Andrade. – O homem olhou para a velhota. – Sabe quem é? – A velhota sorriu e acenou que sim com a cabeça. Os olhos humedeceram-se e a sua respiração acelerou. – Oh! Tenha calma. – O homem riu, passando o braço em redor da velhota. – Alguma velha amiga?
- Não. Uma velha promessa realizada. – Disse a velha, com a sua voz fraca. Sorrindo e apertando o frasco junto ao coração.
- O que é isso? – O homem perguntou.
- É água benta milagrosa. – Disse a velhinha. – Benzida directamente pelo papa. – Ela sorriu. – Traz-me água. – O homem saiu e quando voltou, ele trouxe um copo de água. – Lê-me o que está escrito no frasco.
- São umas letras bem pequenas. – Ele estreitou os olhos para ler melhor. – Colocar uma gota apenas em 0, 33 cl de água. Para beber antes de dormir. Cada gota vale um ano. Não se pode tomar mais de uma gota por mês. Para que é isto?
- Isto é para ajudar a curar a velhice. – A velhinha estava claramente feliz. O homem sorriu carinhosamente.
- Mas a velhice assenta-lhe tão bem. – Ele disse. – Tem a certeza que isto é só água?
- Água benta milagrosa. – Repetiu a velhota, desta vez com um sorriso enrugado e permanente no seu rosto.
- Muito bem. – Ele disse. – Estou lá em baixo se precisar de alguma coisa. – O homem beijou-lhe a testa e saiu do quarto.
A velha permaneceu a olhar para o frasco. Sorrindo.
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