segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Toque da noite: V

Maria tinha acabado de lavar a loiça. A avó dela tinha-se deitado, uma acção de rotina que ela seguia à risca desde que Maria se lembra. A típica sesta alentejana.
Um toque na porta fê-la pular. Espreitou pela janela da sala e foi abrir.
- Boa tarde! – Daniel parecia mais alegre que a noite passada.
- Olá. – Ela desviou-se para que ele pudesse entrar.
- A minha mãe oferece beringelas. – Ele tirou o saco da mochila e foi colocá-lo na bancada da cozinha. Maria seguiu-o.
- Agradece-lhe por mim e pela minha avó. – Ele sentou-se num banco. Maria arrumou as beringelas na dispensa da cozinha. Daniel ficou a observá-la. – Já sabes do acidente do tio da Tatiana?
- Já. Sabes alguma coisa sobre o estado deles?
- Parece que o senhor Manuel é o que está mais mal. Os gémeos estão bem e a Teresa, parece-me que também se magoou mas não é nada de muito grave. – Maria sentou-se ao lado dele no banco. Ela girou um pouco de maneira a ficar na direcção de Daniel. Daniel olhou-a e deu um pequeno sorriso. – Tenho que te perguntar uma coisa. – Ela disse.
- Sim?
- O que é que te fez mudar de opinião em relação ao que te contei? – Daniel sabia que mais tarde ou mais cedo teria que ouvir aquela pergunta. E ele decidiu manter-se perto da verdade. Ocultando apenas a parte de que, ele não estava totalmente convencido de que os sonhos de Maria eram realmente verdade, embora ela acreditasse nisso.
- Tu não tinhas motivos para me mentires sobre um assunto desses. Mesmo que fosse para te desviares de alguma coisa que não me querias contar. – Maria ficou a pensar na resposta.
- Isso era a única coisa que eu não queria contar. – Ela desviou o olhar e fixou-o no fruteiro que estava sob a bancada. – Não é um assunto para se falar assim.
- Eu sei. É delicado. Mas tu precisavas de falar com alguém. E eu sou teu amigo, sempre pudeste falar comigo sobre isso, principalmente quando sentias necessidade. – Ele pegou numa maçã de plástico do fruteiro. – Já nos conhecemos há tanto tempo. – Ele brincou com a maçã, passando-a de uma mão para a outra. – Não devíamos ter este tipo de segredos. – Daniel pensou na ironia das suas palavras. Ele também tinha um segredo de Maria. Ou melhor, dois. Dois que temia contar-lhe, mesmo sendo ela a sua melhor amiga.
- Pois não. – Ela pegou na maçã que Daniel tinha na mão. – Eu também gostava de poder contar à Tatiana. – Daniel não disse nada. Maria pôs a maçã no fruteiro. – Achas que eu devia? – Daniel imaginou Tatiana ao saber daquilo tudo.
- Ela é muito sensível a essas coisas. Não acho que seja uma boa ideia. – Tatiana acredita muito em tudo. Isso ia ser difícil, porque assim Maria teria alguém a encorajá-la com tudo aquilo. – Ela ficaria assustada de morte se soubesse que tu podias prever mortes de pessoas.
- Não é de todas as pessoas, só algumas. – Daniel calou-se por uns segundos. Maria levantou-se e fez sinal para Daniel a seguir. Foram até ao quarto dela. Maria debruçou-se e espreitou por debaixo da cama. Daniel já tinha entrado milhares de vezes naquele quarto. As cortinas lilases ainda eram as mesmas de quando eram pequenos, mas a decoração já não era de uma menininha que brincava com bonecas. A grande cama de ferro, pintada de preto ocupava o centro do quarto, encostada à parede e de frente para a pequena varanda, a única fonte de luz natural naquele quarto. Um leve e doce odor perfumado envolvia o quarto de Maria, cheirava a baunilha. Daniel inspirou profundamente.
- Aqui. – Maria sentou-se sob a sua cama, levando uma caixa com um padrão floral. Daniel sentou-se na beira da cama, de modo a ficar de frente. Suavemente, Maria retirou a tampa e pegou no que parecia ser um monte de fotografias antigas. – A minha avó tinha-as guardado no sótão. Ela não se lembrava, mas no outro dia eu descobri-as.
Um sorriso involuntário surgiu nos lábios de Daniel. As sobrancelhas relaxaram e uma nostalgia agradável envolveu-o.
- Olha só. – Pegou numa fotografia em que junto à ribeira quatro crianças brincavam. Uma menina de cabelos muito compridos e muito loiros, separados em dois totós altos, segurava um molho de flores selvagens numa mão. A outra menina estava de joelhos no chão, com as bochechas muito vermelhas, tinha o cabelo liso num corte recto ao longo da mandíbula, e uma franja que quase lhe tapava os olhos muito vivos e verdes. Ao lado, um rapaz de cabelo preto, com nariz recto, sorria revelando a falta de alguns dentes, e tinha os joelhos esfolados. Atrás do grupo, um outro rapaz, um pouco mais gorducho e de cabelo loiro, estava a fazer beicinho, com o cabelo desalinhado e os braços cruzados.
- Tinha-mos sete anos. – Maria riu. – Foi no dia em que obrigámos o Tiago a fazer de vilão. Lembras-te?
- Se me lembro. – Daniel riu. – E tu ainda tinhas o cabelo liso na altura.
- E a minha mãe obrigava-me a ter o cabelo curto. – Maria fez uma careta. Daniel pegou noutras fotografias. Passaram quase duas horas nisso. Recordando os velhos tempos. E a gozar com a forma como se vestiam e pensavam.
- Os teus pais quiseram fazer-te uma festa surpresa, mas tu já sabias. Eu e a Tatiana fomos logo contar-te.
- Convidaram quase todas as crianças da nossa idade cá da aldeia. E tu brigas-te com o João por causa do último balão com confetis.
- E depois ele foi a chorar a contar à tua avó. Porque eu lhe atirei com um bocado de sumo para cima da sua t-shirt do Batman.
Eram lembranças doces. Maria sentia-se muito confortável em poder passar algum tempo a pensar em pequenos momentos que eram tão especiais na sua vida. Daniel, por outro lado, tinha saudade, mas no fundo estava agradecido por poder estar com Maria naquele momento. Após tantos anos em que só se viam num fim-de-semana de Verão, ou na altura da Páscoa e outros feriados mais duradouros. Daniel sentiu o seu humor mudar. Lembrou-se da causa para a vinda de Maria até a aldeia.
Enquanto Maria ia remexendo e falando sobre as fotos, Daniel passou os olhos pelo quarto, meticulosamente. Olhou para um grupo de livros que se amontoavam na secretária, procurou pela pequena prateleira mas não encontrou nada.
- Eu nem sei o que é feito daquele fato de macaco do Tiago. – Maria falava.
- Nem eu. – Daniel respondeu, meio distraído. Então os seus olhos fixaram-se na mochila azul que estava pendurada num cabide detrás da porta. Um pouco da capa do diário de Maria era visível. A questão era como pegá-lo e lê-lo sem que Maria notasse. - Maria! – A avó Medina gritou do seu quarto.
- Vou já. – Ela respondeu. – Já volto.
- Sim. Eu vou ver o resto das fotos. – Daniel pegou num molhe de fotografias e fingiu vê-las. Maria saiu do quarto. Assim que a ouviu falar com a avó, Daniel levantou-se num salto, pegou no diário, e folheou-o. Havia demasiadas páginas escritas. Ele não iria ser capaz de ler tudo. Tentou pensar rapidamente numa solução. Mas sentiu os passos de Maria a aproximarem-se, e quase sem pensar colocou o diário dentro da mochila dele.
- A minha avó às vezes consegue ser mesmo chata. – Maria resmungou. – Chamou-me só para me dizer para não me esquecer de telefonar à Tatiana, e para quando o fizesse que lhe fosse logo contar as novidades. – Daniel sorriu.
- Não é só a tua avó. – Ele fingiu terminar de ver as fotografias. – Belos tempos. – E colocou as fotografias na caixa. – Se não precisares de mim eu vou ter que ir para casa. – Daniel levantou-se. – Prometi à minha mãe que dava uma arrumação ao meu quarto.
- O teu quarto está sempre arrumado. – Maria disse-lhe surpresa. Daniel já se tinha esquecido do quão difícil era manter a coerência de um mentiroso. E Maria conhecia-o bem. – Eu estive à procura de um cabo para o amplificador. Perdi-o e não o achei em lado nenhum.
- Espero que o consigas encontrar.
Daniel praticamente voou na bicicleta pelo caminho de terra. Se Maria desconfia-se que ele lhe tinha roubado o diário, ele nem queria imaginar o que aconteceria.
Largou a bicicleta no chão da garagem e correu para o seu quarto. Fechou a porta e sentou-se na cama. Retirou cuidadosamente o diário da mochila, e sentiu o leve cheiro a baunilha. Embora fosse um cheiro sumido, dava para sentir a familiar fragrância. Abriu a capa e parou na primeira página. Uma dedicatória escrita a azul-turquesa, na primeira folha, branca sem linhas.
“ Para a nossa querida Maria, a nossa melhor amiga, para poder escrever os seus segredos e desabafos, e assim nos contar tudo exactamente como se passou quando voltar para casa. Muitos parabéns! Das tuas amigas, com quem poderás sempre contar, para o bem e para o mal, que jamais te deixarão sozinha, Raquel e Soraia.”
Daniel já tinha ouvido falar delas. São as duas amigas de Maria lá da cidade dela. Saberiam elas a verdade sobre Maria? Passou a folha e perdeu-se na leitura da vida de Maria.
“ 5 de Setembro de 2008
Tenho medo do que me espera. Vou morar com a avó Medina. Ela está sozinha e os meus pais vão deixar-me ir para ver se a avó consegue lidar com o meu problema. Embora com a idade ela não seja a mesma pessoa com o mesmo tipo de consciência adulta, ela continua a ter muitas das qualidades que tinha como educadora. Na opinião deles eu estou muito doente e não sabem como lidar com isso. A minha mãe acredita que já não sou mais eu, que algum tipo de espírito se apoderou do meu corpo. A semana passada, um padre espanhol, conhecido pelos seus feitos como exorcista veio cá à cidade.
Tal como eu temia, os meus pais levaram-me. Foi a coisa mais estúpida em que me enfiei. O padre ficou surpreso por eu não tomar nenhuma reacção à sua oração e aos salpicos de água benta. Ele fez-me perguntas do tipo “quem és tu? Porque ocupaste este corpo?” Eu respondi-lhe que era simplesmente eu, que não havia mais ninguém dentro do meu corpo. Estava calma, apenas um pouco chateada por estar toda salpicada de água e presa a uma cadeira desconfortável de madeira.
Foi um momento embaraçoso, mas eu não fiz nada. Só podia ser paciente com os meus pais, embora a minha mãe já não fale comigo como dantes. O meu pai tenta falar comigo, de coisas normais, mas até ele se contem. Noto um certo cuidado quando ele fala comigo.
Tudo porque fui amaldiçoada com estes pesadelos. Nem sempre fui assim e estou a chegar a uma altura da minha vida em que me sinto muito deprimida. Na escola já corre boatos sobre o que se passa comigo. Sou olhada de lado e muitas das pessoas que falavam abertamente comigo e me cumprimentavam, deixaram de o fazer. Talvez por medo. As únicas pessoas que ainda continuam a falar comigo e que nada mudou na minha relação com elas, foram a Soraia e a Raquel. Contei-lhes tudo o que se passava e elas acreditaram logo. Desde então têm feito algumas pesquisas e apoiam-me sempre. Espero que tudo melhor quando for para a aldeia. ”
Daniel mudou de página. Mas não encontrou nada relevante nas próximas leituras. Até que chegou ao dia em que Maria teve o primeiro pesadelo na aldeia.
“ 10 de Janeiro de 2009
Voltou a acontecer. Não sei o que faça. A avó já sabe e acha que foi apenas um mau sonho. Mas eu sei que não.
Sonhei com o senhor da mercearia, as vozes e as sombras humanóides estavam lá. Não deixo de ter a sensação de que as vozes que oiço me são familiares. Mas já não sei mais o que pensar, sinto-me confusa e mais só do que o costume. A minha avó não está em condições para pensar correctamente e as minhas amigas não estão perto de mim. Tentei falar com elas hoje, mas a Soraia estava numa festa de anos e a Raquel foi para a República Dominicana com os pais.

Sinto-me tão fraca, com um buraco dentro de mim sugando toda a minha felicidade. Não posso fazer nada, não sei ao certo a hora a que vai acontecer, mas será de noite. Devia ir falar com o senhor Medeiros, mas isso só me ia trazer mais tristeza. Eu não quero voltar a passar pelo mesmo que passei na cidade. ”
Vários pontos enrugados no papel eram sinal de que Maria tinha chorado. Daniel tinha uma certeza, ele acreditava no que Maria lhe tinha contado. Mas ainda tinha as suas dúvidas. Voltou a página.
“ 17 De Janeiro de 2009
Já aconteceu. Todos estão agitados à procura do senhor Medeiros. E eu aqui a escrever, sabendo coisas que mais ninguém sabe. Ele foi-se para sempre.

Ontem à noite a Soraia ligou-me. Tivemos a falar quase uma hora. Ela acha que eu estou a fazer bem. Que é melhor não me envolver de maneira nenhuma nesta situação, ser apenas uma observadora. É muito difícil. Mas eu não espero que a Soraia compreenda. O peso da culpa que recai sob os meus ombros esmaga-me. E eu já nem sei como ser eu mesma. Estas palavras fazem-me lembrar a minha mãe.
Oh deus. Como é difícil ter que carregar estas chagas. Não sei se aguento. Sinto, literalmente uma dor no peito. É tão doloroso que por vezes tenho que sair de casa e ir caminhar. Digo à avó que vou dar uma volta para não perder a forma, mas na verdade vou caminhar a passo apreçado até á ribeira. Ajuda-me a aliviar a dor e os nervos, embora não os elimine.
Pensei em contar o meu segredo à Tatiana e ao Daniel. Mas mudei de ideias, por conselho da Soraia. Daniel jamais iria acreditar, ele é demasiado céptico em relação a este tipo de temas. E a Tatiana provavelmente ia ficar com medo de mim. Eu não os quero afastar. Neste momento são das melhore coisas e das poucas que restam na minha vida.”
Nas outras páginas Maria não fez mais referência ao sonho. Ela descrevia apenas o tão bom que era poder desfrutar da natureza, dos velhos amigos a tempo inteiro e das sobremesas da avó. Entretanto falou da nova escola. Daniel não pode evitar de ler a parte em que ela falava dos rapazes que conheceu, e de quando reviu amizades de infância que não via há anos. Havia um tipo que ela achava muito giro que trabalhava na pizzaria. Daniel fez uma nota mental de que se fosse almoçar com ela iria evitar a pizzaria. Então prendeu-se numa parte do diário mais recente. Do dia de ontem. Ela fez uma descrição perfeita do que se passou na ribeira e do pedido de desculpas que ele lhe fez. Mas a parte a seguir, encheu-o de uma excitação e felicidade tonta.
“ Parece estranho para mim, o quão adulto Daniel pareceu hoje. Fez-me olhá-lo com outros olhos. Deixei de o ver como o miúdo tonto que achava piada a atirar papelinhos cheios de saliva para os cabelos da Tatiana. Realmente houve coisas que mudaram aqui. Ou talvez não. E, só agora, eu esteja a ver que afinal tenho amigos verdadeiros neste lugar. Descai-me na ribeira, mas nunca imaginei que o Daniel acabasse por reagir assim. Mal posso esperar para contar à Soraia e à Raquel, elas vão cair para o lado de surpresa.
Estou muito satisfeita por ter alguém como o Daniel. Ele é a sorte que me bateu à porta. E não posso evitar de sentir um grande carinho por ele. Céptico como ele é, acreditou em mim. É verdade que não aceitou logo, mas acabou por acreditar na minha palavra ao invés de todo o seu sentido racional. Como posso agradecer-lhe? Irei apenas ser a amiga sincera e dedicada que ele merece. Jamais lhe guardarei segredo do que for.”
Amiga dedicada. Daniel pensou. E toda a sua excitação se foi. Fechou o diário e não quis ler mais nada. Foi um grande sacrifício não ler, mas a verdade é que já tinha conseguido o que queria. Seria possível, aquilo estar mesmo a acontecer com ela? Seria possível, ela ter mesmo os sonhos premonitórios? Mas como? Não lhe parecia lógico, podia ser algum tipo de coincidência misturado com algum tipo de confusão da parte de Maria. O senhor Medeiros era um homem que não era propriamente de feições suaves. Muitos dos miúdos tinham medo de ir à mercearia porque diziam que ele era um lobisomem. Talvez isso tivesse tido algum tipo de influência nela.
Guardou o diário de Maria na mochila e pensou numa desculpa para voltar a colocá-lo no lugar.



1 comentário:

  1. Oi, Luna! Acabo de lançar minha sôfrega coletânea do contos entenebrecidos. E peço-lhe, num abuso, a gentileza de divulgar esta obra do ilogismo em seu elegante e talentoso espaço. Informações em

    http://clubedeautores.com.br/book/4939--ANTOLOGIA_DO_ABSURDO_

    De qualquer forma, obrigado! Abraços fraternos.

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