domingo, 6 de setembro de 2009

Toque da Noite: I

A doce melodia nocturna rodeava todos os seus sentidos. Pequenos animais escondidos por entre as ervas comunicavam, o vento acariciava de mansinho as folhas de um salgueiro e o céu encontrava-se limpo, revelando uma lua crescente misteriosa. Ele ergueu a cabeça e encarou por algum tempo os pontos luminosos de tamanhos indefinidos que enriqueciam o céu. Eles transmitiam-lhe uma onda de serenidade e relaxamento. Inspirou profundamente e sentiu o selvagem odor do campo, o perfume das ervas daninhas misturava-se com o cheiro das ervas aromáticas plantadas numa horta próxima. Quando expirou, baixou a cabeça e continuou o seu caminho. Era certo que ia fazer uma visita fora de horas, mas tinha que resolver as coisas.
Abriu o pequeno portão de madeira silenciosamente. Andou para a entrada e bateu levemente na porta de metal. A noite estava calma. Desde que o cão de guarda tinha sido atropelado por um jipe da GNR, que a senhora Medina não tinha arranjado outro. Ele voltou a bater com mais força. Ouviu um ruído dentro de casa, e a luz da entrada acendeu-se. Ele esperou que os seus olhos se ajustassem à intensidade da luz, pestanejando.
- Quem é? – Uma voz rouca e profunda soou.
- Senhora Medina, sou eu, o Daniel. – Ele ouviu um arrastar de pés, a porta abriu-se e uma mulher muito gorda e baixa estava perante ele, enfiada numa camisa de dormir rosa clara, que mais parecia um saco de batatas. Com uma espingarda numa mão, encostada lateralmente.
- Mas o que é que se passou? – Perguntou com um tom de alarme na voz.
- Não é nada grave. – Garantiu-lhe o rapaz. – Eu precisava de falar com a Maria.
- Achas que isto é horas de falares com quem quer que seja? – Resmungou a mulher gorda, enquanto voltava as costas e arrastava os pés pelo chão.
- Sei que não. E desculpe incomodá-la a estas horas. Mas era um assunto que eu tenho que falar com a Maria. – A mulher carrancuda olhou para ele. – Um assunto que não podia esperar por amanhã.
- E que assunto é esse rapaz? – Perguntou mal-humorada.
- Deixe estar avó. – Uma rapariga ensonada desceu as escadas. – Eu trato disto. – Ela tinha os seus olhos muito verdes semi-cerrados. A mulher encarou-a, e as suas feições carrancudas aliviaram-se.
- Tens a certeza?
- Tenho sim. Vá se deitar, que eu vou tratar disto rápido e também já me vou deitar. – A rapariga pôs os seus braços em volta da senhora de idade, e encaminhou-a para as escadas. A mulher deu-lhe a espingarda, e subiu preguiçosamente.
- Eu não te queria acordar. – Ele começou. – Mas eu tinha que falar contigo.
A rapariga colocou a espingarda dentro de um armário por debaixo das escadas, e dirigiu-se para a sala de estar, que era mesmo junto à entrada. Em silêncio sentou-se no sofá. Ele sentou-se junto a ela, e olhou para o cimo das escadas. A senhora Medina estava a observá-los do topo das escadas. A rapariga girou a cabeça nessa direcção.
- Precisa de mais alguma coisa avó?
- Era só para me despedir. Até amanhã! – Disse num repente e desapareceu no andar de cima.
- Até amanhã avó. – A rapariga respondeu. Voltou a cabeça para o rapaz e encarou-o. Os seus olhos já estavam mais abertos, o rosto sério e um pouco rosado. – O que me queres dizer?
- Eu peço-te desculpa pela maneira como hoje me comportei contigo. – Ele encarou-a com um olhar triste. – Eu sei que foi uma estupidez reagir daquela maneira.
- Sempre foste muito céptico em relação a este tipo de coisas. – Ela olhou para baixou, e pegou numa das almofadas do sofá. – Para ser sincera, eu nem sei onde tinha a cabeça ao pensar que ias reagir de outra maneira. - Fez-se um silêncio. Daniel continuava a olhar para ela. Ele mal podia acreditar que se sentia tão bem perto de Maria, apesar de tudo aquilo que ele sabia sobre ela. Ela era uma rapariga muito bonita, à sua maneira. O cabelo castanho claro, muito encaracolado que lhe caía pelos ombros, moldava uma cara oval, de feições muito suaves e meigas, embora tristes.
- Mas eu pensei sobre o assunto. – Ele chegou-se um pouco para mais perto dela. – Eu não acho que isso seja assim tão mau. – Ele pegou no rosto baixo dela, pelo queixo e levantou-o suavemente. – Só temos que ter mais cuidado. – Os olhos de Maria humedeceram, e ela abraçou Daniel. O rapaz sentiu a humidade no seu pescoço, e entregou-lhe um lenço de papel para ela limpar os olhos.
- Isso quer dizer que não te importas com aquilo que eu sou?
- Importo. Faz parte de ti, e eu vou ter que me importar sempre, caso queira ou não. – Quando Maria o libertou do seu abraço, ele olhou-a seriamente. – A única coisa que de momento posso fazer por ti é apoiar-te. – Mesmo assim, ela sorriu.
- És um bom amigo. – O relógio da sala tocou. Marcava uma hora da manhã.
- Tenho que ir. – Ele levantou-se, e Maria imitou-o. – A tua avó não achou piada nenhuma à minha visita a esta hora.
- Amanhã nem se vai lembrar. – Maria disse-lhe. – Vai pensar que sonhou tudo. – Riram-se os dois. Maria abriu-lhe a porta. Daniel olhou-a mais uma vez.
- Então até logo. – Ela sorriu.
- Até logo Daniel. E obrigada. – Ele afastou-se em direcção ao pequeno portão de madeira. Maria ficou a vê-lo a afastar-se. Sentindo uma onda de gratidão em relação àquele rapaz magro, de cara comprida e nariz recto, que sempre a apoiara desde pequena. Ela sorriu para si mesma, feliz pela sorte que lhe tinha batido nessa noite à porta e foi-se deitar.

1 comentário:

  1. Oi, Luna! Acabo de publicar meu primeiro livro pelo Clude de Autores e gostaria imensamente de ter a honra de poder divulgá-lo no seu excelente blog. Bom,em todo caso, agradeço desde já. O livro está em

    http://clubedeautores.com.br/book/4939--ANTOLOGIA_DO_ABSURDO_

    Um grande abraço!

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