sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Toque da noite: VII


Os pais de Maria pediram para que ela e a avó fossem durante o fim-de-semana lá a casa. Eles queriam ver a filha antes do começo do ano lectivo. Maria fez as malas das duas. E na sexta-feira de manhã foi-se despedir de Tatiana e Daniel. À tarde foram apanhar o expresso (autocarro) na cidade. A avó Medina não gosta muito de viagens longas, por isso passou as duas horas da viagem mal disposta com toda a gente.
- Oh minha nossa senhora de Fátima! – Escandalizou-se a avó Medina. – Mas aquela rapariga vai nua. – Maria não pode conter uma gargalhada.
- Avó, ela tem uns calções, muito curtinhos por debaixo da blusa. – Maria explicou enquanto a avó Medina seguia com o olhar a rapariga assim vestida. Os olhos esbugalhados e a boca ligeiramente aberta foram a expressão mais cómica que Maria tinha visto na cara da sua avó desde sempre. Por isso tirou o telemóvel e tirou-lhe uma fotografia. – Oh filha! Tu não tires fotografias a esta desavergonhada!
- Eu não estava a tirar fotografias à rapariga. – Maria guardou o telemóvel numa bolsa. – Estava a tirar-lhe a si para mais tarde relembrarmos este momento. – A avó Medina riu.
- Já estás a fazer pouco da avó? Eu estou demasiado velha para estas coisas. – Ela pousou a mão no joelho da neta. – Eu nem me tinha apercebido que as jovens de hoje andam assim vestidas. – Ela ficou pensativa. – Eu já tinha visto em novelas, mas sinceramente, pensava mesmo que não era assim, que aquilo era só para chamarem a atenção dos homens para eles começarem a ver novelas também. Graças a Deus que lá na aldeia as raparigas não se vestem assim. – Ainda bem que a avó não chegou a ver as fotografias da festa de anos da Cristina, uma colega de turma de Maria. Ela tinha uns calções deste tipo e uma blusa do tipo tomara que caía muito justa. Maria pensou enquanto sorria carinhosamente para a avó.
Mais tarde, quando chegaram à ultima paragem de autocarro. O pai de Maria estava sentado num banco, levantando-se assim que viu a filha e a mãe a aproximarem-se.
- Filho! – Gritou a velha com alguma emoção, abrindo os braços e quase desequilibrando-se. Já fazia nove meses desde que vira o filho pela última vez.
- Olá mãe. – Ele abriu os braços e deu um suave abraço à mãe. Provavelmente com medo de a magoar, ela parecia cada vez mais frágil com o passar do tempo. – Como foi a viagem?
- Muito chata e desconfortável. – Ela resmungou. – Mas só para te por a vista em cima já valeu a pena. – O homem sorriu. E virou-se depois para Maria, abrindo novamente os braços para a poder abraçar com força.
- Maria! – Ele disse com um sorriso ainda mais aberto. Espremendo-a com muita força.
- Olá, pai. – Ela sentiu o ar escapar-se dos pulmões involuntariamente, com o aperto. – Estás a sufocar-me.
- Oh. – Ele largou-a. – Desculpa. Já estava com muitas saudades.
- Pois. Têm sido umas longas férias da tua responsabilidade paternal. – Maria comentou, arrastando as malas para a parte de trás do carro.
- Nem por isso. – Ele disse, pegando em duas das malas e enfiando no porta-bagagem. – Uma vez que estás mais longe, torna-se mais difícil e as minhas responsabilidades triplicam. – Sentaram-se no carro, a avó Medina quis ir atrás.
- Então já sabes quando começam as aulas?
- Sim, é dia 17 de Setembro.
- Já só falta uma semana. – O pai dela comentou. Eles ficaram em silêncio uma grande parte do caminho, mas quando já estavam perto da casa a avó Medina comentou:
- Henrique! Tu estás mais gordo!
- Mãe, eu só engordei uns quilitos.
- Isso não é nada bom para a tua saúde. Já não tens idade para andares a comer tudo o que te aparece na frente. – O pai de Maria rolou os olhos, de maneira fatigada.
- Eu sei mãe. Mas as pessoas por vezes engordam só pelo simples facto de ficarem mais velhas.
- E descuidadas. – Acrescentou imediatamente a avó. – Tenho que falar com a tua mulher sobre isso. – O pai de Maria ficou calado. – Por falar nela. Ela já se convenceu que Maria não é nenhum mal, que não está possuída? – Ele rolou novamente os olhos, mas desta vez sem a preocupação de disfarçar.
- Pode tratá-la pelo nome. A Leonor nunca pensou que a Maria fosse um mal. Ela é uma crente muito grande e pôs a possibilidade de que o problema fosse mais do que um simples problema de saúde.
- Simples problema de saúde. – Maria interpôs-se. – Sim. Realmente, adivinhar o desaparecimento ou uma possível morte de uma pessoa pode se chamar de um pequeno problema de saúde. Sobretudo com uma explicação exacta por parte da ciência.
- Peço-vos para não começarem a falar disso na frente da Leonor. – Ele pediu ao avistar os portões da sua grande casa. – Ela está muito mais descansada desde que soube que Maria deixou de ter esses sonhos. – Parou o carro na garagem. – O que suponho que seja mesmo verdade, não? – Maria respondeu sem olhar para a avó, olhando directamente para os olhos do pai, sem lhe dar uma oportunidade de desconfiar da sua resposta.
- Sim, é verdade. Porque haveríamos de mentir sobre um assunto tão sério? – Henrique não respondeu, saiu do carro e ajudou a descarregar as malas. Leonor, uma mulher muito alta e elegante apareceu. As maçãs do seu rosto estavam ligeiramente avermelhadas e não havia qualquer sinal de cansaço na sua cara. Maria já não a via assim desde a primeira vez que lhe apareceram este tipo de sonhos.
- Olá mãe. – Ela cumprimentou, enquanto lhe deu um fraco abraço. Leonor esboçou um pequeno sorriso e retribuiu o abraço com um pouco de mais força.
- Como estás filha?
- Muito bem. Obrigada.
- Leonor. – Disse a avó Medina. – Estás mais magra. Ao contrário do Henrique.
- É. Abriu uma McDonalds perto do escritório dele e agora come lá muitas vezes. – A avó Medina levantou uma sobrancelha.
- Um quê?
- Servem comida de plástico, daquela rápida. – A avó fez uma careta ao ouvir a explicação da neta.
- Valha-me Deus! – Disse a avó olhando para o filho como se ele fosse um tonto.
- Deixe-me levar-lhe as malas para o seu quarto. – Interrompeu Henrique sem gostar do rumo que aquela conversa estava a ter.
Há hora do jantar Leonor falou sobre o novo salão de cabeleireiro que ela tinha aberto. Aparentemente estava a ter muito sucesso e já tinha várias raparigas cabeleireiras a trabalhar para ela, reduzindo-lhe horas de trabalho. Maria estava aborrecida com a conversa, mas pelo menos não estavam a falar da suposta “doença” dela. Mais tarde passaram a falar da morte do senhor Manuel. Henrique lembrou dos velhos tempos em que percorriam todas as quintas da zona e brincavam. Leonor estava definitivamente com boa cara e aparentemente esmerou-se na cozinha, pois a refeição estava muito boa.
- Estás tão calada. – Disse Leonor a Maria.
- Estou cansada da viagem. – Ela remexeu com a colher a sua pequena taça de salada de fruta. – Acho que me vou deitar a seguir ao jantar. Vou só terminar a sobremesa. – Leonor sorriu, mas deu para entender que não estava satisfeita com alguma coisa. Provavelmente estava a aperceber-se do grande buraco sentimental que se tinha aberto entre ela e a filha.
- Eu também estou muito cansada. A viagem de autocarro não é nada agradável para pessoas com a minha idade. – A avó Medina tinha terminado a sua salada de fruta. – Parabéns Leonor! Esta refeição está mil vezes melhor do que aquela porcaria que me deste da ultima vez.
- Da última vez tive um pequeno incidente com o sal. – Leonor ainda não tinha aceitado o facto de alguma vez ter sido a pior cozinheira de sempre. – E obrigado. Eu tenho tido mais tempo para aprender e praticar.
Assim que terminaram o jantar, Leonor recusou a ajuda da avó Medina e de Maria para arrumar a loiça. Disse para descansarem, que no dia a seguir iam a passear.
Maria tinha tido muitas saudades do seu quarto, da sua cama e dos seus tapetes estrelados. Ela olhou pela janela, a lua estava cheia e brilhava intensamente, embora os seus raios mal se notassem devido aos candeeiros da rua. O som da noite era diferente, ouviam-se carros ao longe, e por vezes lá disparava um alarme de um carro. A rua daquela zona era sossegada, um ou outro gato aventurava-se nos contentores do lixo e por vezes os cães dos vizinhos ladravam. Maria fechou a janela. O ruído da cidade banhada pela noite já não lhe parecia correcto. Na quinta da avó parecia tudo muito mais real, ela sentia a falta dos grilos e de poder ver as estrelas.
Deitou-se na cama e puxou o lençol sobre si. Deixou-se de dormir a pensar no dia seguinte em que ia reaver as suas amigas da cidade.

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